Desafio da Última Linha

Acompanhe aqui as sugestões de cada um:

Desafio dos Neologismos - Encerrado
Desafio dos Títulos -Encerrado


quarta-feira, 23 de julho de 2008

Minha Esperança

Era um salgado prometer raquítico,
Que nesse doce réquiem paraplégico
Se revira na podridão letárgica,
Flébil, frágil e débil, panegírica.

Flores brancas zombam dos para-médicos,
Que em franco desespero categórico,
Agitam nas mãos práticas narcóticos,
Que lá brilham metódicos, robóticos,
Quase mágicos, contos ortobióticos...

Mas no fim, só os vermes...

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Um Réquiem para Bonifácio

Só o prólogo, por enquanto.

Era difícil crer que era verão, por causa do vento gelado, ingrato, que corava as bochechas do menino Max. Seus cambitos de apartamento chacoalhavam pelas ruas de uma cidade serena, limpa e cinza, uma tal de Salzburg, numa tal de Áustria. As pessoas eram loiras, bonitas, de olhos claros. Mas o dia não era bonito, não.

Bonifácio era o homem que Max conhecera havia três anos, no café onde esperava seu pai depois das aulas de violino. Era um homem com lá seus vinte e poucos anos. Magro, mas não raquítico. Tinha cabelos loiros e abundantes. Na primeira vez em que se encontraram, Bonifácio ofereceu ao menino, que tinha nove anos na época, um chocolate quente (era outono). Max, aflito, recusou.

Sempre lhe disseram que não aceitasse ofertas de estranhos. Porém, quando, no dia seguinte, Bonifácio persistiu, com um tom tão doce e insistente, Max acolheu o homem em sua mesa, e foi-lhe companhia durante um lanche silencioso, breve.

Não era normal que homens de vinte anos saíssem por aí oferecendo chocolates a meninos de nove. Mas algo no rosto do homem, a barba por fazer, os óculos calmos, os olhos azuis, algo fez o pequeno Max se esquecer de todas as regras que lhe haviam ensinado sobre aceitar coisas de estranhos.

O dia seguinte foi um sábado, e eles não se encontraram. Na segunda-feira, Max encontrou Bonifácio de novo, e dessa vez até conversaram um pouco, sobre trivialidades, como escola, esportes.

Era um cara engraçado, aquele Bonifácio, fazendo suas gracinhas acabou conquistando o pequeno Max, que, antes de perceber, tinha completado doze anos. Sempre, de segunda a sexta, depois das aulas de violino, encontrava o rapaz e conversava. Sempre, sem que fosse dito, sem que fosse advertido, ele soube que não deveria contar a ninguém, ninguém mesmo, sobre o jovem Bonifácio que encontrava no café.

Depois de três anos, já se conheciam bem. Max, por exemplo, já sabia que Bonifácio era órfão de pai (que morrera num acidente de carro antes de completar um ano), que morava numa área nobre da cidade, que cursava direito na universidade, mas pensava em largar para fazer jornalismo, que nunca tinha tido uma namorada de verdade mesmo.

Foi alguns meses depois de Max ter feito doze anos que Bonifácio morreu. Max não soube como, nem onde, nem quando, mas soube que morreu. Era estranho que um ritual tão cotidiano tivesse se tornado tão importante. Foi então que Max, se sentido bem mal pela morte do amigo mais velho, esqueceu-se do pai, que em pouco tempo viria buscá-lo, e pôs-se a andar nas ruas serenas, limpas e cinzas de Salzburg, no frio verão Austríaco.

E começou a assobiar. Assobiou uma melodia ao acaso, enquanto errava no frio, e, em seu não-pensar confessou o que sentia numa bela música. Pensou em tocá-la no violino, mas sabia que não levava jeito para o violino. Muito embora seu professor o tenha dito a seus pais em algumas ocasiões, eles sempre insistiram. Desde os oito anos!

Max queria parar com as lições de violino. Queria estudar geografia, as coisas dos países e das cidades sempre o fascinaram. Queria aprender esloveno, porque ouviu uma vez um imigrante falando e achou lindo, mas seus pais lhe negaram isso: tinha de ser violino. Para que aprender a tocar os instrumentos, se ouvi-los já tocados era muito mais prazeroso?

E andava, assobiava, andava, assobiava. Um passo, uma nota, um passo, uma nota.

Passou por uma padaria. Deu-se conta de que já várias vezes passara por ela, e sempre sentira aquele mesmo cheirinho de croissant, de pão quente, mas que nunca comera nada dali. Contentou-se com o aroma e seguiu em frente, ou tanto faz a direção.

E assobiava, andava, assobiava, andava. Uma nota, um passo, uma nota, um passo.

E lhe perguntaram que melodia era aquela, tão bonita, tão suave:

Um Réquiem para Bonifácio,

respondeu, satisfeito.

A mediana

“A minha vida, eu preciso mudar, todo o dia, para escapar da rotina dos meus desejos por seus beijos”
(Nasi)




Lúcia gabava-se de uma qualidade sua que punha atrás de nuvens todas as outras: seu equilíbrio. Tratava-se uma moça bastante centrada, categórica e sistemática. Um exemplo de pessoa para o desenvolvimento do capital, podia-se dizer, posto que sua rotina era de causar inveja mesmo aos mais metódicos idosos da região.
Era de acordar sempre às seis da manhã, sem o auxílio de qualquer aparato sonoro. Confiava seu despertar puramente a seu relógio biológico, que até então nunca havia falhado e, supunha-se, nunca falharia. Acordava, preparava o café da mesma marca de sempre comprado no mesmo mercadinho de sempre. É importante ressaltar, entretanto, que ela nunca admitira ser o café o elemento crucial para a manutenção do seu bem estar e dos seus olhos abertos durante o dia. Para ela, o grão nada mais era que um simples abridor de apetites, um pequeno luxo meio-amargo para comemorar a vitória de ter tido mais um dia e uma noite bem-sucedidos. Lúcia era muito bem-agradecida pelo simples fato de estar viva, fato admirável e exemplar que não se podia negar.
De café tomado, punha-se a caminhar – incrivelmente sempre com a mesma velocidade – para a banca de jornal, na qual comprava o mesmo jornal. Era realmente uma pena que as notícias não eram as mesmas de sempre. Que injustiça o mundo mudar!
E enquanto o mundo girava em torno de si mesmo, ela caminhava em círculos na estrada da vida.
Ao retornar, lia uma ou duas páginas (sempre essa mesma quantidade) e, insatisfeita com as notícias locais, vestia o mesmo terninho, apanhava sua bicicleta e pedalava seu caminho para o trabalho.
Lá, passava boa parte do dia a carimbar papéis, os quais, infelizmente, não eram do mesmo conteúdo do dia anterior. Quão amável era ver o trabalho mecânico de Lúcia, umedecendo seu carimbo estimado na tinta e, como quem descarrega toda a raiva, premendo-o contra os papéis que lhe eram destinados, com a incumbência de que fossem devidamente marcados.
De volta ao lar, tirava seus sapatos – adquiridos desde que seus pés, gloriosos pés, cessaram de crescer – e os engraxava com todo o esmero possível, como a cuidar de uma jóia rara. De fato, faz-se necessário admitir que, no pequeno mundinho de lucidez e equilíbrio da moça, os sapatos eram cruciais para a manutenção da sua rotina. Quem mais levaria pés tão gloriosos para a labuta diária, protegendo-os dos eventuais percalços do caminho? Nada havia de melhor no mundo que seus sapatos, exceto, talvez, o café, aquele prêmio merecido por mais um estágio galgado na dificuldade que era a vida.
Mesmo que o cenário fosse sempre o mesmo, os personagens do jogo da vida eram constantemente trocados – eis mais uma injustiça do mundo, que insistia em girar e armar uma grande conspiração contra a moça – e isso bastava para que a dificuldade desse jogo aumentasse. Um dia, por exemplo, teve de desviar de um transeunte desavisado da importância do mesmo caminho percorrido pela bicicleta de Lúcia. Quem, no mundo, Deus, haveria de atrapalhá-la no percurso sacro de todo dia? Devia ser uma conspiração internacional, organizada especificamente para atrapalhá-la e, portanto, ela merecia um prêmio por sobreviver a tais mudanças bruscas nos seus hábitos. E ei-lo: o café preparado às sete e quinze da manhã de todo o dia.
Relaxada em casa, punha-se a cozinhar o mesmo cardápio nutritivo, este cuidadosamente calculado em função da perda de nutrientes sofrida pelo organismo no dia-a-dia.
Satisfeita, tomava um banho não muito demorado – cujo tempo de duração era de exatos oito minutos, medidos cautelosamente pelo seu relógio biológico, o mesmo infalível que nunca a deixava de acordar – e atirava-se na cama.
Tudo por ela feito o era em incondicional desencadeamento de fatos, sem que houvesse tempo para questionamentos acerca da mediocridade de sua vida.
Porém, num fatídico dia, a perfeita ordem do mundo de Lúcia foi abalada.
Em meio a uma pequena crise financeira (que ocorrera pela incapacidade de Lucia de pegar uma quantia diferente de dinheiro, malgrado a inflação ou reajustes de preços quaisquer), Lucia pedalava pela calçada de uma rua de poucos passantes quando, de súbito, avistou uma nota reluzente de cinqüenta reais no chão, como que sorrindo para ela.
Começava, então, o inferno da dúvida de Lúcia Cecília.
Dividida entre pegar o capital e deixá-lo lá, ela cometeu o primeiro e último grande erro de sua vida: parar de pedalar. Olhou para os lados, para cima, para a cédula, para todos os cantos: ninguém passava no momento.
Mas qualquer mudança no seu padrão econômico implicava numa mudança na perfeição de sua rotina, que por sua vez, implicava na morte.
Venceu, como sempre (e isso já não é hábito descontrolado apenas de Lúcia), seu lado capitalista-burguês. Cega pela avidez de apanhar o capital, a jovem não notou que um carro vinha em sua direção e, concomitantemente à colocação do dinheiro no bolso, houve um choque.
Acabava-se, pois, a glória da vida mediana de Lúcia.
Pobre moça.