Desafio da Última Linha

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domingo, 31 de agosto de 2008

Ficção

1. Primeiro Contato, olhar, deslumbre

Foi como uma trovoada inesperada, num dia ensolarado, aquele olhar. Eles eram muito novos, os dois meninos, e não sabiam no que estavam se metendo.

Mas foi uma coisa tão magnética que não dava para não sentir. Dois pares de olhos ligados por um fio invisível de fascinação durante alguns segundos, tão mútuo, simultâneo, impossível de esconder.

Estende a mão. Não, não estende, não por enquanto. Fala alguma coisa, melhor não, melhor ficar de boca fechada. Aquilo ia durar para sempre, aquele momento, por mais momentâneo, aquele momento não ia acabar nunca. Não aquele sentimento, não aquela coisa, aquele quê indescritível do embasbaco. Seria um instante eterno, talhado para sempre na memória, nos olhos, nos corpos.

E, arrastados pelos pais, levados para longe do outro, sentiram a sensação se prolongar, como se ainda estivessem se observando inconseqüentemente, se estudando.

Era um shopping, onde eles estavam fazendo compras de natal. Era um dia quente, tomado pelo marasmo do mormaço, um daqueles dias em que o sofá, o sorvete, o ar condicionado tentam nos dissuadir de sair de casa. Há quem sucumba. Mas como os planos cósmicos nunca dão errado, os pais dos meninos são obstinados.

Enquanto iam por caminhos opostos, agora afastados por um préstito consumista, iam se consumindo de perguntas, de dúvidas, e, sobretudo, de uma sensação maravilhosa, diferente de tudo conhecido.

Uma espécie de gostar, misturado com querer, misturado com uma vontade danada de entender. Um sentimento de completo inacabado. A chave estava na fechadura, mas ainda não tinha sido virada.

Não se encontraram durante o resto do dia, mas essa não era a última vez em que se viriam. O cosmos é mais sábio que isso.




2. Segundo contato, palavras, medo

Apenas em fevereiro do ano seguinte se enxergaram de novo. Enquanto isso, passaram por um período de quaresma emocional difícil de agüentar, uma saudade dos diabos do desconhecido.

Não apagaram das memórias os rostos um do outro, na velha esperança pueril de encontrar a bola de gude no matagal. E todo dia pensaram naquele instante permanente, no dia em que se tornaram imortais um para o outro.

Era, novamente, um típico dia do verão carioca: abafado, insuportável. Estavam os dois na praia, com suas famílias. Quis o cosmos que suas barracas fossem vizinhas, e quis que se vissem. E se viram.

E quando se viram se transportaram para outro lugar, talvez uma outra dimensão, ou qualquer coisa do gênero. Estavam isolados, alheios a tudo em volta. Novamente, veio um silêncio breve e eterno.

“Oi”

“Oi”

Quanto receio, minha sacra misericórdia... Olha o que a gente bota nas cabeças das crianças hoje em dia...

“Eu me lembro de você”

“É, eu também. No shopping”

“É, no shopping”

Deu um passo à frente cada um. Vozes tímidas, pequeninas, numa imensidão de areia e gente e mar. Dava para sentir a tensão, o medo de errar, de falar besteira.

“Eu sou Gabriel”

“Eu sou Henrique”




3. Segundo contato, toque, medo

E apertaram as mãos. Mas não foram só suas mãos a se tocar. Foi muito mais. Ficaram tanto tempo ali, um segurando a mão do outro, sem balançar, que devem ter-lhes chamado a atenção várias vezes.

Quantos anos tinham? Onze?, doze? Já estava na hora.




4. Segundo contato, toque, júbilo

sábado, 30 de agosto de 2008

Ficção

Não há nada melhor que ser egoísta: comer o sorvete todo sozinho e não ter que oferecer para ninguém é bom demais! Por isso fantasiamos sós... Quando neguinho começa a pôr o dedo nas nossas fantasias, nas nossas ficções, nas nossas pseudo-verdades, nas nossas pessoas tão ímpares, rapidamente brota um orgulho que não sabíamos existir. “Tira o dedo dele que ele é meu”. É como sua irmãzinha querendo mudar o cabelo do seu boneco de Lego.

Por isso é tão bom escrever histórias de ficção. É como ter um oceano de Lego só pra você, esperando para ser montado.

Se o meu Lego te revoltar, lembre-se de que é só Lego, e simplesmente não brinque comigo. Vai ver se tem Playmobil, vai.

Luta

Com a mesma desconfiança se encaravam, um no olho do outro, desafiadores, prepotentes. Não falavam a mesma língua, então não falavam, só rondavam, descrevendo um círculo de poeira e antecipação que umedecia o ar e secava as gargantas dos espectadores ansiosos.

A tensão era tão grande que cada passo mais ruidoso, cada respiro mais longo e cada olhar mais firme traziam uma cadeia de interjeições de assombro enquanto os combatentes apertavam com mais decisão as armas, preparavam a boca para pronunciar as palavras, cada um em seu idioma.

Era quase possível ouvir as folhas das árvores, tremendo de medo de fogo e de vento, sussurrando as últimas preces para seus espíritos superiores, que riam da impotência das súditas e da inevitabilidade da batalha iminente, mais próxima com cada milímetro que as sandálias de couro ousavam progredir.

E foi o estalido de uma fogueira na aldeia que desencadeou tudo. Um clique surdo, que soava como os ruídos dos discos pretos que traziam os ciganos em suas máquinas fantásticas.

Em menos de um segundo, ambos tinham as armas em punho: um apontava no alto uma espada fina, tão leve que fazia a platéia se perguntar como a lâmina podia estar tão imóvel, refletindo um fio de luz preguiçoso que ofuscava as pessoas a um certo ângulo; o outro movia duas machadinhas que acompanhavam o ritmo estranhamente calmo de sua respiração.

Agora não mais andavam: estavam parados, esperando o sinal do vento para começar. O que fariam, exatamente, seria surpresa para todos, inclusive eles mesmos. Os mais experientes viam no brilho inconstante dos olhos do espadachim que flertava com um salto a meia altura. Se o adversário percebera ou não tal intenção era incerto, pois fora ensinado a não demonstrar.

O vento soprou mais forte e era esse o sinal. O homem que empunhava a espada fina deu um salto a meia altura, de modo que seus joelhos ficaram à altura do tórax do inimigo, que, habilmente, se esquivou, jogando as costas ao chão, apoiando-se com uma machadinha, erguendo a outra, cortando a brisa cegamente.

Pronunciou meia dúzia de palavras na língua estrangeira e o vento era águia e cravou suas garras longas e inclementes na carne ingênua do espadachim precipitado, que gritou de dor ao sentir a gelidez do ciclone que embrulhava seu corpo impotente como um pacote sem vida, enchia seus pulmões com uma frieza inumana e fazia-o pender pateticamente no ar, para o desgosto da claque de aldeões que acompanhava a luta.

Em pouco tempo, a pele do derrotado tomou uma cor de azul acinzentado fúnebre, e qualquer um que prestasse atenção em seus lábios veria uma derradeira tentativa de fazer saltar do fogo qualquer coisa, mas a essa altura já não era possível mover a boca para formar palavras; o único som a sair foi um último e humilhado grito de dor e raiva, acompanhado de uma nuvem branca que fugia de sua boca.

Ainda apoiado em uma das machadinhas, o vencedor acompanhou a majestade grotesca da cena com os olhos semi-cerrados de um campeão principiante, não acostumado à vitória e às implicações mórbidas do júbilo sem sentido de pessoas sanguinárias, dispostas a parabenizar um estrangeiro se exibisse o espetáculo por que clamavam, mas com o tempo a glória de vencer obumbraria o absurdo da luta em si.

Melado de suor e areia fina, levantou-se para receber os cumprimentos do público no mesmo instante em que um corpo cinza caiu no chão como uma pedra levantando uma névoa indiferente. Poucos pareceram se importar genuinamente com o homem, e apenas duas mulheres lhe deram alguma atenção. Uma delas chorava doentiamente, devia ser a mãe, e a outra tentava consolá-la, mas parecia ter mais apreço pela mulher desesperada que pelo combatente morto.

Dentro de seu vocabulário deficiente do idioma local, conseguiu esboçar diversos obrigados com um sotaque desengonçado. Uma criança empolgada ofereceu-lhe um bicho malacodermo, que se movia nervosamente entre os dedos superiores do menino, que não passava de seis anos. O gesto fez as pessoas repetirem insistentemente uma palavra ao homem, que nada compreendia. Fizeram um gesto, no entanto, inconfundível: apontaram para a boca enquanto mastigavam ar.

Apesar do asco que o animal lhe provocava, sentiu-se impelido a atender aos pedidos, uma vez que vencera uma luta na aldeia deles e precisava demonstrar bravura. Ele tomou na mão uma criatura surpreendentemente quente e esperadamente escorregadia e a colocou na boca com um movimento só. O gosto era bom, mas a textura fazia-o sentir as tripas se revirarem. Engoliu de uma vez o que quer que fosse, e sorriu orgulhoso para as crianças alegres e para os adultos satisfeitos com educação do forasteiro.

Enquanto isso, uma terceira mulher, bem mais velha, se juntou às outras duas. Ela untou o corpo cinzento com uma espécie de malagma, que rapidamente fez sua pele reganhar a cor e a vivacidade. Como um autômato, nascia adulto, e tomava ciência do corpo e do ambiente. A mulher que antes chorava descontroladamente agora dava beijos alegres nas bochechas do homem, prostrado no chão. Assim que recobrou os sentidos, foi atingido por uma dor enorme, e agonizou na areia por um tempo. Levaram-no para dentro de uma cabana, e não se soube dele por dois dias.

Naquela noite, riram com a pantomima profissional dos ciganos por um preço justo, beberam e comeram, enquanto o derrotado agonizava no quarto, solitário, escuro, derrotado. Derrotado.

sábado, 9 de agosto de 2008

sobre táxis

...em dias nublados como aquele observava. Como era esse o fato, via os táxis.
Alguns, dizia pra sí, eram 'mostarda, e não amarelos' enquanto outros pareciam 'não ser cor-de-táxi o suficiente'.
Talvez fosse impresão sua; efeito do dia cinza, que deixa tudo meio sem cor. Não se lembrava de ver isso nos dias de sol, em que tudo é tão claro e brilha tanto... E sua mente vagava e vagava, até que resolveu parar.
Efeito do cinza ou não, continuava lá a espera de um táxi amarelo o suficiente.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Some com a televisão e diz-lhes a verdade sobre nós

Vem, aparece e vem,
Ser papilionáce
o
E edênico. Eleva-me!

Entrega-me o silêncio,

Embriaga-te os sentidos...

Deixa-te ir, deixa-me vir

Cobrir teu corpo de palavras

Úmidas e mornas,

De amores perdidos,

De sonhos umbrais,

De viagens oníricas.

Tu, que habitas os magmas,
Brotas de meus sintagmas,
Trotas nos campos ápiros
De tormentas, de sátiros...

Torna-me teu!
Diz-lhes quem sou...
E porque venho...

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

O caminho sem volta

“Eu estou sentindo uma clareza tão grande que me anula, como uma pessoa atual e comum” (Clarice Lispector)



Até então, havia sido um dia muito normal, sem nada que fugisse à paz e à tranqüilidade de sua vida. Conforme o planejado, tudo havia saído dos planos: ele tinha um luxurioso prazer em planejar muito bem o dia para simplesmente fugir ao roteiro pensado. Era um fora-da-lei de si mesmo, por assim dizer.
Sendo assim, ao invés de ir ao banco pegar o dinheiro de que precisava, permitiu-se uma rápida visita à biblioteca pública local, apenas para efeito de curiosidade. Ele nunca lá havia estado e sempre planejava lá ir, o que, logicamente, nunca era cumprido, deixando-se sempre para mais tarde o passeio cultural pensado.
O ambiente era do mais puro silêncio, apesar da grande quantidade de pessoas que ali estavam – digo grande quantidade porque, atualmente, qualquer número acima de quinze pessoas dentro de uma biblioteca é bastante. Ele deu voltas e voltas pelas prateleiras, pegou livros, julgou-os todos pela capa, devolveu-os às estantes. Estava lá pura e simplesmente para nada fazer, já que a idéia do dia era fazer muitas coisas.
Até que um pequeno livreto o surpreendeu, localizado entre antologias poéticas de Schopenhauer e Augusto dos Anjos.
E é bastante notável que o livro o tenha chamado a atenção, porque não havia qualquer atrativo em sua capa: um simples tomo azul-marinho com os dizeres impressos em letras miúdas ao canto inferior direito: “O caminho”.
E, mais notável ainda foi o fato de Lúcio ter se decidido a sentar numa mesa qualquer e folhear o livro, já que dispunha de tempo livre – no qual, segundo seu roteiro do dia, estaria sendo ocupado por uma aula de yoga e dois tempos da faculdade, nessa ordem.
Sentou-se e pôs-se a ler o livro com um certo esmero. Abriu-o pela primeira página à procura do autor, mas não encontrou nem notícia deste.
Enveredou-se pela segunda, terceira, quarta, quinta página...Nada de autor ou qualquer informação sobre a publicação.
Até que chegou à sexta página e, neste momento, foi tomado de súbita vontade de ler, de modo que nem lhe passava mais pela mente a idéia de largar o livro.
Eis o conteúdo: a verdade.
Naquele momento, exato momento do término do livreto, Lúcio havia se deparado com o caminho, a clareza, a razão de ser.
É claro que, num primeiro momento, ele se sentiu deveras assustado com a grandiosidade do que vinha a ser a lucidez.
Entretanto, seu susto não passou num segundo momento e muito menos num terceiro: a verdade havia lhe causado um grande choque.
Pois, se isso era, de fato, o Fato, o que fazer com ele? O que fazer, agora que sabia do que sempre fora escondido a todas as outras existências? Contar-lhes a verdade, de início, pareceu-lhe uma boa saída, mas isso seria muito difícil, posto que ninguém o levaria a sério – quem ouviria alguém que simplesmente não consegue se encaixar num dia-a-dia sadio?
Atordoado, saiu pelas ruas em busca de perguntas, porque as respostas contidas no volume de “O caminho” já lhe enchiam a cabeça o suficiente.
Esquecer o que fora lido também não era solução, afinal, o conhecimento mostrava-se como sendo um caminho sem volta. Por mais que se esforçasse, a verdade, que tão facilmente fora absorvida, simplesmente não lhe deixava as sinapses nervosas e tomava de assalto todo e qualquer outro pensamento: ele já não conseguia pensar em outra coisa que não o Fato.
Agora, não se tratava mais de um simples problema de separação do joio e do trigo. Ele precisava separar o álcool da água, o açúcar do leite, o amor do ódio.
Pensamento e verdade haviam se fundido de tal maneira que era inútil sua vontade de esquecer: porque quanto mais se esquecia, mais lembrava.
Por outro lado, se abandonar seu problema não era possível, impossível também era a convivência com essa clareza, que de nada lhe servia, mas que lhe assombrava de tal maneira com a qual era impossível de lidar.
Lúcio, então, foi tomado de uma certa inveja dos transeuntes que passavam a seu lado, alheios da verdade e, portanto, do seu grande problema. Eles simplesmente ignoravam-na e, assim, viviam felizes no seu torpor diário, nos caminhos retilíneos das suas rotinas.
Até que, por um breve e abençoado instante, ele foi quase atropelado por uma jovem de aspecto austero, que pedalava uma bicicleta com admirável leveza e tranqüilidade. Após uma gama de xingamentos, ambos seguiram seus caminhos, como se nunca tivessem se encontrado antes.
Foi quando lhe veio pergunta crucial (afinal, como já foi dito, de respostas, Lúcio já estava pleno): seria morrer a solução? Se seu assombro de vida se encontrava no pensamento, na luz, não haveria solução mais racional que parar os pensamentos. E que maneira seria mais elegante e eficiente que a morte? Apesar de dolorosa, a suposta dor da morte não seria pior que a dificuldade em se viver com a verdade e com a inveja ácida dos que simplesmente conseguiam viver normalmente por ignorá-la.
Lúcio até teria se matado, se houvesse se decidido por alguma forma de morte antes de passar em frente a uma birosca suja e mal iluminada, cujas únicas fontes de luz eram uma lâmpada fraca e uma televisão, na qual era exibido um jogo de futebol.
Para sua sorte – e para que ele continuasse vivendo – enquanto ele passava pelo bar com a televisão sem notá-lo, Cecil Théodore, francês, marcava um gol pelo time local, sendo um causador de gritos vivazes. O que, abençoado seja o fato, lhe fez perceber a televisão e, conseqüentemente, distrair-se com ela.
Ao término do jogo, Lúcio já não se lembrava tão bem do conteúdo do livro que, até agora, havia sido sua sina.
Infelizmente, a felicidade do esquecimento durou pouco para o rapaz, que logo se viu de volta com a verdade na mente.
Porém, a lucidez suprema lhe veio e, de súbito, ele compreendeu tudo o que era necessário para que o problema fosse resolvido sem que ele se sacrificasse para tanto.
Tomou um ônibus para casa – sorte a dele, morar relativamente perto do local onde já se encontrava – e, ao chegar, atirou-se no sofá como quem necessita de um sopro de vida e ligou a tevê, agora exibindo um novo capítulo da novela das seis.
E sobreviveu assim, nessa sobrevida.