Desafio da Última Linha

Acompanhe aqui as sugestões de cada um:

Desafio dos Neologismos - Encerrado
Desafio dos Títulos -Encerrado


quinta-feira, 30 de outubro de 2008

No escuro

A primeira que coisa que se faz necessário dizer é que, aqui onde estou, onde quer que eu esteja, não há luz. Conseqüência: deve haver milhões de coisas a serem enxergadas, mas isso, no momento, é impossível. Apesar de não poder ver, não tenho vontade de andar por aí. Posso tanto estar num escritório vazio quanto numa sala de tortura, portanto não arrisco dar um só passo. Melhor continuar sentado no chão, que não me parece áspero o suficiente para machucar, mas também não é confortável.
A idéia de ficar no chão nunca é confortável, diga-se de passagem.
É como se eu estivesse menor do que o mundo, menor do que tudo, menor do que eu mesmo.
(O ser humano é mesmo uma máquina perfeita. Os meus olhos já se acostumam com o escuro e eu agradeço por senti-los ainda no mesmo lugar.).
Ainda com um certo receio, tateio meu próprio corpo – a única coisa que, se tateada, não me trará surpresas desagradáveis – e descubro que ainda o tenho íntegro. Isso é bom.
É bom não estar amarrado a nada, mas descobrir-se livre é melhor ainda.
-Olá? –arrisco eu, na esperança de ser ouvido, mas só consigo perceber uma voz a responder-me, um eco: “Olá”.
Pela lógica, eu que sempre fui bom em usá-la a meu favor, descubro que estou num lugar relativamente pequeno. Pequeno o bastante para que eu me ouça: tanto em eco quanto em pensamento.
Entretanto, a lógica falha quando ouço a mesma voz, uma segunda vez, perguntar-me:
-Confortável?
(Nos arquivos da minha memória, havia um pequeno catálogo sobre o que eu entendia por “eco”.
Eco é uma reflexão de som, portanto, repetem exatamente o som que fora emitido e, sobretudo, apenas respondem. Os ecos, até onde sei, são incapazes de perguntar coisas. Não são do tipo que toma iniciativa.
Frente a essa constatação, fiz o que qualquer alma boa faria numa situação de perigo.)
Gelei.
Apesar de um pouco amedrontado, consigo manter o bom humor de sempre:
-Não.
-Que pena, Mário.
-Quem é você?
-Você sabe.
-Não brinque.
-Eu posso ser um assassino sanguinário coberto de sangue, posso ser uma mosca, um monstro, um mago, um médico, um matemático, uma mulher, um marciano, um mártir, um matador...Você ainda quer saber?
-Quem é você?
-Acenda a luz. Há uma corda acima da sua cabeça. Se não confia em mim, pode balançá-la e ouvir o barulho da lâmpada no metal. Mas esteja preparado para qualquer surpresa.
-Você venceu.
Eu, portanto, encontro-me dividido entre continuar o diálogo com esse ser incógnito ou enfrentar o medo de encarar o que eu, frente ao tom que o desconhecido apresentava, encarar de frente o que eu não gostaria.
-O que você quer?
-Ora, quantas perguntas! Conversar não basta?
-Não vê que essa não é a melhor hora de fazer isso? Melhor me tirar daqui. Quero voltar para casa!
-Por que não? Estamos sempre em casa, Mário.
-Não quero conversar.
-Respeito sua escolha. Mas te peço: não tema. Eu não vou te fazer mal. Seria loucura, suicídio, burrice.
Quem quer que estivesse falando, calou-se.
O silvo agudo do silêncio é mais desconfortável ainda quando não se sabe onde está, junto a alguém que não se sabe quem é.
É tão grande o desconforto que encho-me de coragem, estico a mão direita para cima e, enfim, puxo a corda que, segundo meu cárcere, iluminaria tudo.
Ele não mentira: uma luz amarela acende-se e posso enfim enxergar onde estou: uma versão modificada da minha própria sala de estar. A mesma, se lhe faltassem mobílias. Entretanto as janelas e portas estão fechadas e, pelo vidro, não vejo nada além de um breu denso.
Os olhos, machucados pela luz repentina, começam a recuperar-se e, enfim, acostumam-se ao novo ambiente. Talvez seja difícil para eles aceitar que ali, onde agora há luz, seja o mesmo lugar de antes.
Não vejo, contudo, o que realmente me levara a acender a tal lâmpada. Suponho que ele esteja atrás de mim, mas a coragem, que antes tive, se esconde e prefiro manter o cárcere apenas idealizado. Fizemos uma troca secreta: ele me mantém preso na sala, no mundo real e eu o mantenho preso fora da minha mente.
-Tem medo de encarar a verdade?
-Há certas coisas que são melhores incógnitas.
-Sei bem como você se sente.
-Não sabe.
-Mais do que você imagina.
-O que você quer de mim?
-Eu já disse: apenas conversar.
-Conversar sobre o quê?
-Não sei, puxe um assunto.
-Quero sair daqui.
-Você é muito monótono, Mário.
-Como você sabe meu nome?
-É óbvio.
-Porque?
-Você é muito cheio de perguntas, mas eu sei como você se sente.
Ele conseguira mudar meus sentimentos. O que antes era medo passou a ser irritação.
Então, me viro e vejo que ele não era nada que eu não houvesse visto antes. Não era perigoso, mas me causa um desconforto imenso.
Era eu.

domingo, 26 de outubro de 2008

Saída do Blog

Como pessoa que acredita na comunicação e esclarecimento público, venho aqui deixar registrado minha saída do Blog e seu respectivo motivo.
Simples: não participo à meses, nem postando, nem comentando e, por fim, nem tendo o interesse para tal. Apaguei todas minhas postagens anteriores e meus recados. Esta é minha última postagem no Blog e fica à cargo de vocês deixá-la aberta ou não ao resto do público. Na minha opinião, seria esclarecedor.
Desejo boa sorte à todos que continuam escrevendo no blog, Vicor, Pedro, Jéssyca e Cássia.
Um abraço à todos,
Daniel

Título é coisa de comunista

Tomado pelo "furor democrático", como descrevi meu entusiasmo eleitoral mais cedo a minha mãe, passei um domingo esperançoso em meio a uma atmosfera carregada de indefinição. Ainda sou menino (e não me contradigam!) e entendo tudo isso como inocência -- muito embora nós, jovens, muitos pela primeira vez fazendo parte desse maravilhoso processo eleitoral, minto, circo estapafúrdio, deixemos nossa naïvité natural fora de cogitação ao refletir sobre nossas emoções.

Reflexões acessórias à parte, narro. Minha mãe, mulher nos seus quarenta, desencantada com o Brasil, nascida no caldeirão político que era o Brasil às vésperas da ditadura (veio ao mundo em 1963), todo domingo -- único dia da semana que passa em casa -- escuta um programa de rádio espírita em uma rádio AM, pontualmente às seis da tarde. Hoje não foi exceção, como haver-se-ia de esperar de um culto espírita.

Desde às cinco e pouquinho montávamos um quebra-cabeças de mapa múndi, que acompanhou os fascículos dos Atlas National Geographic, com que ela tão afavelmente vem me presenteando e, às seis, desliguei a televisão, a seu pedido, e levei à sala seu guerreiro rádio de pilha branco encardido. Despedi-me da Globo News e mergulhei nos oceanos Pacífico Sul, Atlântico Sul e Índico, enquanto ansiosamente projetava em meus pensamentos sobre o que poderia estar, concretamente, ocorrendo no mundo das eleições.

Várias vezes minha mãe tentou, em vão, me acalmar. Afinal de contas, levei todo esse processo eleitoral (leiam, se possível, aliás, a crônica que João Ubaldo Ribeiro no jornal O Globo) muito a sério, muito pessoalmente. Ouvi-a dizer que essa era a primeira vez em que escolhia um cadidato não por conveniência, como contingência, para impedir que outro, ainda mais insofrível, tomasse posse. Que era a primeira eleição em que se sentira votando em um candidato, e não contra outro. Et cetera.

Era injusto, pois, da minha parte, indignar-me. A primeira vez em que fui recebido com apatia por mesárias degostosas (de forma alguma as culpo -- e mais, temo o mau-humor que exibiria caso fosse recrutado para função tão ingrata) em um domingo desconfortavelmente quente foi para votar em um candidato em cujo potencial de mudança acreditava. Não que visse meu candidato como o libertador messiânico como muitos vêem seus escolhidos, deixemo-lo claro.

Concluímos o quebra-cabeças, pelejamos para encontrar a forma mais adequada, mais anti-empregada desastrada de guardá-lo (pensamos em emoldurá-lo, tão lindo que ficou). Liguei a televisão. Tão logo veio o choque: vi Lúcia Hippolito -- não, não ouvi, vi -- comentando a vitória parcial do candidato GI Joe, nosso tão amado político boneco, feito de um plástico indestrutível. Ainda dominado pelo "furor democrático", desabei em impropérios para gente que não podia me ouvir e que desconhecia minha existência. Desmoronei no desamparo que vejo habitar os semblantes dos mais experientes. Implodi em raiva.

A frase "meu candidato não foi eleito" não é simplesmente alvitre da insatisfação -- claro, se GI Joe tivesse perdido, seus militantes também o lamentariam --, mas o apelido de uma construção metafísica que gosto de chamar de Mausoléu do Pensamento. Sim, amigos, o pensamento morreu. Tudo aquilo que minha mãe, já conformada com a mediocridade, sempre me disse sobre a mentalidade das pessoas, sobre como elas pensam a política (optei pela transitividade direta, se não se importarem), acabou por se revelar, para mim, agora, o alicerce do dito mausoléu.

Acordarei, amanhã, sentindo na pele o ar quente do Rio de Janeiro que olhou a mudança nos olhos e fez-lhe do peito peneira. O Rio, amanhã, será Nathuram Godse, para mim. Mas antes que atirem pedras, retifico: a votação massiva de meu candidato implica, diretamente, uma mobilização. Não foi suficiente. E é precisamente a insuficiência que me açoda a gritar com a inocente televisão.

Sinto conformar-me com a mediocridade. Lembro-me da recontagem na Flórida que deu a vitória a Bush, o Pateta, e não a Al Gore, que dispensa comentários. Lembro-me de acontecimentos lamentáveis. Mas é como assalto. Você ouve falar e se incomoda. Você é assaltado é tomado por um tanatos indescritível.

Eu já fui assaltado. Hoje, em um sentido a mais. E o que levaram não se vende a varejo, como alianças políticas.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

É o que acontece quando põe-se lápis e papel nas mãos de uma pessoa sem sono (ou "O Banco")

Já fazia uns bons anos que ele, o banco, estava naquela praça. Fora cortado e manufaturado a partir de uma árvore sem graça, do meio do cerrado brasileiro, mas sua vida útil, por assim dizer, começara assim que o último parafuso fixara suas bases na praça em que ele estava - como já dito - havia uns bons anos.
Desde quando surgiu, vira de tudo um pouco: casais apaixonados, bêbados, gente sem casa, animais, senhoras. Por ter tanto tempo de existência , dir-se-ia até que já fora mais do que um simples banco. Mesa, cama, ninho de amor, esconderijo, paraninfo, confidente, assento.
Não era vivo, mas existia. Existia não porter consciência de si, mas porque era. Como algo tão terno e tão antigo poderia ser qualificado como inexistente?
Mas não se preocupava em existir, inexistir ou deixar de existir. Continuava sendo. Inventava-se uma nova função sempre que possível. Descobria-se um novo objeto e isso era o suficiente.
O tempo continuava lá, parado, e à medida que as pessoas e as coisas iam por ele passando e morrendo e nascendo, ele continuava na sua eterna multi-funcionalidade.

Um dia, o mundo acabou.

Com ele, o banco, a mesa, o ninho de amor, o esconderijo, o paraninfo, o confidente, o assento, os casais apaixonados, os bêbados, a gente sem casa, os animais, as senhoras.
E tudo isso tornou-se a evolução máxima do que pode ser: matéria.

domingo, 19 de outubro de 2008

Anfiguri para o azul escuro bem escuro

É azul escuro bem escuro,
quase negro,
mas tão somente quase.
Antes, o penúltimo nível.
Tão negro que só se vê um brilho
indefinível,
pobre visível resíduo de luz
que conduz ao refúgio.

Subterfúgio.

Sou um com o azul escuro bem escuro,
no duro.
Puro encantar indiferente,
desafio dos, aos, nos meninos...
Redondos, vítreos.
O sinistro e o direito discutem.

Quantas Macondos há?
Heim?

Galhos curvos
refletem
em
rios turvos.

Enganam-se.
Rebelam-se,
na parcialidade
azul escuro bem escuro,
na eternidade
frouxa,
na passividade
louca.

Rouca
está a voz dos sonhos.

Pouca.

Chacoalhe, adicione uma colherada de
suor, sonhos sadios, sábios sabiás súbitos, salgados
cúbitos. (Quantos, oitocentos?)
Careço súditos...
(Vou vesti-los com cambraia
azul escuro bem escuro.)

Faço um anúncio.
“— Precisos súditos”
Ecoou, enjôo.
Vôo, perdôo. Dá tudo na mesma.
Afinal de contas, tem sempre os malditos corvos,
azul escuro bem escuro,
espreitando por aí nos nascimentos.

Esconderijos não faltam.

O que houve ontem?
Ele ouve um homem?
Comeu couve
antes de o trem passar?

Passa, logo, trem, que o céu vai ficar
azul escuro bem escuro,
cheiinho de sangue e velhice.

Mas não esquenta, guri.
Azul escuro bem escuro
é bonito. Eu gosto.
Meu gosto.
Isso posto,
prato tosco,
(risos) ele não é coxo.
Brado: nem roxo!
Nem roxo!

São eles roxos, os rouxinóis?
Assim como amarelos sãos sóis?
Tu,
pronome pessoal do caso reto da segunda pessoa do singular,
sóis andar nas calçadas
erradas,
menino? Te cuida.

Hoje, não há que nada;
prostíbulo, préstito prostrado, prado preto em pranto,
pronto, um prato pra princesa pregar.
Produtos pragmáticos em pranto.
Tudo em pranto.
Profusão de pranto.
Pranto.
Em pranto.
– Heim, Pranto?
– Nada prático que preste.

Agora deixe descansar.
Em seguida leve ao forno, acento vinte graus, leste;
vire destilado, revire sem beber. Círculo, seta.
É, amigo, desce matando, desce morrendo, desce apodrecendo.
Podre. Círculo, seta. Caneca
sueca.

Choro na choupana de chapéu,
achatado chuí chuá do chagrin descola!

– Jura?
– Juros!
Vai pagar com uma taxa altíssima.
Qual o índice de corre, ação!
Ela leu e disse que o meu futuro era
azul escuro bem escuro.
Juro.

Mas, que é isso?
Azul escuro bem escuro
no fundo bem no fundo
é só uma cor como outra qualquer,
argumentou a mulher.

Cócegas nas narinas nocivas. Nunca nasça,
promete-me? Me promete? Prometo, amorzinho.
Claro que prometo, já disse que prometo,
e a cláusula?
Não tem clausura? Tem cápsula ou casulo?
Tem clavicórdio? Tem crápulas no conclave?
Tem, sim, senhor.
Troca um troço pra eu trazer uns trogloditas traficantes?
Troca, tio, troca.
Toca, trio, toca.

Um mendigo hoje me pediu um pão de queijo,
(verdade verdadeira, hoje, três de outubro,
dê,
dois mil e oito,
eu dei um pão de queijo a um mendigo).

Ouço bem?
Outro bem?
Ou também
outro trem?
Ouro vem!
Ouro sem
outro nem
ostracismo da vida no racismo e no subúrbio.

The suburbs, in Brazil, are for the ignorant, the poor.
The suburbs are ghastly, awful places of doom. I hate them,
I will move near the beach someday, I yearn.

Mas a gente esquecer às vezes como falar o português,
e sorte que eu não. Poeta tem que saber escrever.

Poesia é arte, não é professor,
não é promotor,
não é profissão,
não é procissão,
não é percussão,
não é persuasão,
não é prolação,
não é prótese,
não é mesóclise,
não é aférese,
não é blastômero,
não é pinacoteca,
não é sinalefa.

Se eu faço poesia,
essa, assim, toda jogada,
aluno da mariposa tosca,
(risos) chamei sua mestra de mariposa, riam, pupilos,
riam, caramba!,
até você pode fazer.

Pegue papel e caneta e escreva, escreva sem pensar.
Sem pensar.
Sem penar.
Sem apelar.
Escreve, escriba, que a escrita é escrava da escória!
Na escola,
na escuna,
na escolha,
no estande,
na estante.

Mas, sempre que for fazer poesia,
sempre mesmo,
faça-a
azul escuro bem escuro.

azul escuro bem escuro

Soneto dos Quinze Minutos

O amor é um embuste carcomido,
Que digerido e podre e vão brinquedo,
Não é que creófilo, tolo medo
Da idiotia e do esperar já exaurido.

Eternidade rasa de veneno!
Odioso alvo pranto, é anelo fundo...
Choroso negro júbilo, é imundo...
Crassa bondade do embasbaco pleno...

É mistifório onusto de penumbra,
De que me advertiu sábio histrião:
Hecatombe que a má esperança obumbra!

Amor: inópia do espírito vão,
Sincero badulaque que retumba,
Última prova viva de estar são!

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Morreu, ninguém sabe ao certo quando ou como, largado e bêbedo num meio-fio qualquer.
Saiu de casa em uma quarta-feira para comemorar bebendo o feriado. Quando veio a sexta e ele não voltou, desataram a procurar por bares e conhecidos. Encontraram o corpo já de um dia, esperando ser reconhecido.
Verteram-se algumas lágrimas e começaram a preparar o enterro, limpando o corpo e vestindo-o com roupas de homem de bem. Gravaram palavras dúbias na lápide e flores foram jogadas no caixão, mas o funeral não durou o suficiente para verem a terra acabar de cobrir a sepultura.
Não deixou muito, apenas algumas posses e saudades naqueles poucos que ligavam.