Desafio da Última Linha

Acompanhe aqui as sugestões de cada um:

Desafio dos Neologismos - Encerrado
Desafio dos Títulos -Encerrado


quinta-feira, 19 de março de 2009

O Nosso Apocalipse

E você ali, deitado, entorpecido, o céu alaranjado com a aquarela destruidora. “Acorda”, eu pensava, eu queria. O nosso último contato carnal, era ali agora. Nós éramos toda a humanidade, cada um no planeta era a sua última e única humanidade – ensandecidos pela promessa fatalista, eram tomados; marionetes de tanatos e de eros. Num berro infeliz de bravura e luxúria, eu berro o seu nome, mas você não acorda, respira umas palavras, sem dor. Eu olho pela janela e vejo o laranja se avermelhar, numa funesta previsão cromática, era eu, à janela, pedindo aos céus que o mundo não acabasse, pedindo a quem fosse.

E quando você finalmente desperta: impacto, calor e morte. Nasce-se só e morre-se só; nasce-se pó e morre-se pó. Antagônicos e sinônimos, derradeiros e primevos... E no mesmo desespero calmo, apocalíptico e turvo, eu também acordo. Que calor.

quinta-feira, 5 de março de 2009

Uma Fábula de Esopo Sideral

Vi um programa no National Geographic Channel sobre a ameaça dos asteróides à Terra. Nele, deram aos espectadores uma breve explicação sobre os corpos celestes (alguns chegam a ser do tamanho do estado norte-americano de Nova Iorque) e discutiram nossas opções para evitarmos que o planeta seja atingido por um. Dentre as estratégias propostas, destacam-se a deflexão, o desvio de rota e a destruição total. O documentário fez menção também aos três tipos diferentes de asteróides: uns são monólitos colossais, outros vagam pelo sistema solar em sistemas binários e há grupos de pequenas rochas espaciais que viajam ligadas pela atração gravitacional, os rumble piles. No momento em que se analisava a possibilidade do uso do arsenal nuclear americano para reduzi-los a pedaços, chegou-se à surpreendente conclusão de serem os rumble piles os mais perigosos, apesar de serem os de menor força de impacto.

Um cientista provou-o fazendo uma experiência simples. Sacou uma espingarda e armou a mais ou menos quinze metros de si um altar sobre o qual pôs, separados por aproximadamente dois metros, os três tipos de asteróides de faz-de-conta. Atirou, primeiro, na pedra solitária, em seguida, no par e, por último, numa pilha de pequenos seixos. Como me dizia o bom-senso desde o começo do experimento, a primeira pedra virou pó, o sistema binário perdeu a maior parte de sua massa, mas restaram alguns pedaços de tamanho considerável e o rumble pile permaneceu quase intacto, com a exceção de as pedras terem sido sutilmente afastadas umas das outras.

Moral da história: o resultado de uma tentativa de explodir um rumble pile com uma bomba atômica seria uma chuva de meteoros radioativos.

Segunda Pessoa

Você estava desaparecido, ninguém sabia o seu paradeiro. Claro, só você sabia. Era um beco cinzento que cheirava a lixo e mofo. Você tinha apanhado e pensava em mim. Tinha um hematoma muito feio no abdômen e um corte horrível no lombar. Eles haviam te chutado, socado, pisado. Mas você não sabia o que eles queriam.

Agora você estava numa sala de estar, inerte sobre um sofá, o ventilador soprando uma brisa artificial sobre seu corpo nu. Você sonhava, sonhava comigo, comigo. Você respirava suavemente, seu tórax para cima e para baixo num pulso fácil.

Então você estava num parque sentado sobre uma toalha vermelha xadrez, olhando o céu pensando que ia chover e em mim, pensando em mim, era de manhã. Era um piquenique solitário de primavera.

E era inverno e você estava se agasalhando no quarto, mas nenhum casaco combinava com as calças, as únicas limpas que você tinha, e você pensou naquele casaco que eu tinha, aquele cor de burro quando foge.

Você estava no computador, os olhos vidrados na tela, esperando eu entrar, me esperando, mas eu não venho hoje, eu não venho, eu vou te torturar, um pouquinho mais vou te torturar. Você se desespera, mas eu não apareço. Quando eu sinto remorso e entro, você já está dormindo...

Você está dormindo, sonhando comigo, está comigo sonhando... É um pesadelo, eu digo que te amo, você também, mas é mentira e você acorda e acordar dói.

Acordar dói.

Meu amigo escritor

Tenho um amigo escreve muito bem. Ele escreve sobre o que gostaria que acontecesse, sobre as coisas com que sonha. Mas nada do que ele escreve é verdade. Nada se realiza. São belas, mas são mentirosas, suas palavras.

O que ele escreve, o que sai de seus dedos, é o que engasga em sua garganta. Ele não escreve sobre o que fala, nem fala sobre o que escreve.

Suas palavras são como sonhos, elas não existem. Meu amigo acha perda de tempo escrever sobre as coisas que acontecem na vida se pode escrever sobre as que não acontecem... escrever sobre a realidade é confortar-se com a ineficácia dos sonhos.

Breves, pois, são suas palavras, pois pôr-se a divagar sobre sonhos é sonhar tudo de novo... e isso é tortura, meus amigos.

Despertar

Você acorda, suado. Gente espantada gritando te cerca, e você ali, metido naquele lugar branco, aquelas luzes inorgânicas contra você, tudo meio contra você; e aquela gente frenética se agitando, se agitando, gritando. Você abre os olhos de verdade e vê, e se revolta – num instante, você acaba e recomeça, e você retorna ao seu estado primordial de existência, você se torna uma consciência dormente dentro de um corpo deslocado e machucado, e numa reviravolta inesperada, sono. Agora você acorda de novo, não há ninguém nos arredores. Entra uma luz piedosa pela porta, uma luz amarela e cansada, e você também está cansado. Você tenta se sentir, você tenta se entender, mas há uns tubos, uns aparatos... e quando você se mexe uma dor aguda desperta e berra, uma dor que sai da camada menos externa da pele e perfura sua carne e chega até o âmago do seu ser físico. Você está mole, você está quase sem movimento – e numa agonia desamparada você dá um suspiro, aparentemente baixo, mas inegavelmente audível – as pessoas voltaram. Mais espanto, mas agora, uma calma estranha segue o frenesi, e uma pessoa embaçada cai de joelhos e se desfaz em soluços. Os seus olhos gradativamente captam coisas, coisas inidentificáveis, coisas indecifráveis, hieroglíficas, absurdas! Você está estirado sobre um leito enquanto estranhos ao seu redor falam uma língua ininteligível, numa espécie de caos organizado no qual você é o foco. Memórias, você as tem, e pouco a pouco as recupera. Você é um missionário, você tomou a força o corpo de um homem, um homem, aquilo que você não é, você é uma outra coisa, uma outra entidade, algo outro, algo que não se compara. Mas você está preso a este corpo. Com o tempo, você se lembraria da missão. Até lá.