Desafio da Última Linha

Acompanhe aqui as sugestões de cada um:

Desafio dos Neologismos - Encerrado
Desafio dos Títulos -Encerrado


terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Ruído

Estranha-se a compreensão, hoje; noutros tempos, já foi a compreensão dada por garantida - hoje, é a incompreensão pressuposta; via de regra, não nos entendemos. A palavra, é ela ineficaz, afinal, ou somos nós? Ou dá na mesma? Em que medida podemos medir a incompreensão? Sei que as emoções são ininteligíveis, por experiência não-empírica; mas até que ponto sentimos a ineficácia da expressão das emoções mais facilmente? Talvez nos sintamos tão próximos a elas que elas se transformam em sua expressão, um erro de representação que só pode gerar insatisfação; outros assuntos são menos próximos ao nosso interior, e por isso sua incompreensão é dada como ruído, e não ineficácia.

Mas o ruído existe, ou é apenas algo que inventamos para justificar uma ineficácia tão constante e regular que nos emudeceria se não a ignorássemos ou trocássemos o nome? Existe medida para a ineficácia da expressão? Existiria um limite entre a ineficácia aceitável e a inaceitável? Ele está nas pessoas, que falam e ouvem e esperam enunciados? Está no meio - a linguagem em si, seria ela imprecisa por natureza? Está na mensagem?, ou seja, seria a imprecisão da linguagem não um atributo inerente a ela, mas fruto de nossa incompetência ao empregá-la? Ou onde? Onde está o limite? É culpa dos gnomos?

Essa é a minha busca na literatura; os escritores estou a procurar esse limite entre o ininteligível e o inteligível... mas é um espaço inesgotável. Preciso da medida, de números, de fórmulas. Alguém as tem? ... Alguém as busca, ao menos?

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Noite de réveillon

Todos me esperam para a festa. Notarão minha demora, e ficarão cada vez mais preocupados, mas temo não poder avisá-los. Acharão que fui sequestrado, que me perdi pelo caminho, que bati com meu carro, que os troquei, que os esqueci. A última coisa que lhes passará pela cabeça, se chegar a passar antes que estejam bêbados, é que estou preso num elevador. Estou numa espécie de não caminho, nem no começo, nem no fim, muito menos no meio. Estou, sim, entre o décimo primeiro e o décimo segundo andares, isolado entre paredes, dentro de uma caixa de metal.
É inútil gritar e bater. A música alta que vem do andar imediatamente superior impede qualquer um dos vizinhos de me ouvir. Como são dois os elevadores do edifício em que moro, é certo que ninguém notará a falta daquele em que estou: usarão o disponível se necessário. Não quero amaldiçoá-los por isso. Deixa, que eles têm direito à festa – mesmo que eu também tenha direito ao grito.
Meu celular, negligentemente sem bateria. deus, às vezes, parece pôr-me em situações ridículas. Eis-me, portanto, aqui: incomunicável e preso. Penso que até os encarcerados das prisões gozam de mais comunicabilidade do que eu. Rio, mesmo sem achar muita graça do meu pensamento, menos ainda do meu estado.
Sento-me no chão, já sem muitas esperanças. Alguém me disse, uma vez, que o fim do ano é um momento propício de reflexão, de autoconsciência e de conversa interior. Esse alguém, suponho, nunca percebeu os efeitos benéficos de uma prisão como a que estou. Em companhia das paredes de metal e da porta aberta, que leva a uma quarta parede, de pedra, não posso senão imaginar e conversar comigo mesmo. Sei que as paredes têm ouvidos, mas prefiro dirigir-me a mim, ao menos por enquanto.
Saí atrasado para a festa para que fui convidado. Eram onze e meia, mas tinha a consciência de que o trânsito estaria limpo e, portanto, não demoraria a chegar. Ficar preso num elevador, na noite de réveillon, definitivamente não fazia parte dos planos. Há perigos que passam tão rápido por nós, que ignoramos sua existência. Achamos que, na iminência da morte, haverá um sinal divino, as trombetas dos sete anjos tocarão, e saberemos o momento exato do fim, de modo que, poderosos e sóis, poderemos escapar dela.
Não houve trombetas para mim: apenas uma música de gosto um tanto quanto vulgar, e um elevador que, de inofensivo, tornou-se meu túmulo.
Sei que pareço dramático. Não acredito que vá, de fato, morrer. O fim do ano é que me deixa um pouco sensível. Penso que o clima de mil-abraços do Natal e do Réveillon seja a causa disso. É como uma festa sem música, em que todos procuram parecer mais ou menos iguais. Embarco no fingimento.
Sei que não chegarei a tempo para a festa dos meus. Sentirei falta de seus abraços na passagem do ano. Não darei o primeiro beijo, não dançarei a primeira música. Menos ainda darei o primeiro grito, aquele grito libertador que expurga do corpo todos os doze meses de peso.
Mas ao meu salvador, sim, a ele serei muito grato. Sempre tive algo com a gratidão, essa espécie de humildade. Tendo-o em mente, tenho vontade do grito, como se, por imaginá-lo, ele estivesse nesse preciso momento com os ouvidos colados à porta do elevador social.
Alguém da festa abaixa o som, talvez esse meu redentor. Levanto-me de imediato, gritando e batendo nas paredes. Uma voz berra. Faltam cinco minutos!
A música, contudo, não retorna às alturas. Espero que tenham me ouvido. Continuo batendo e gritando.
Gritam-me de volta. Enfim, a chance de sair desse claustro! Mais vozes se juntam: estão curiosos pela minha má sorte, não tenho dúvidas. Gritam, agora, que vão buscar ajuda, e me tranquilizo. Estou feliz. Sento mais uma vez no chão, agora certo de que a liberdade não demora.
Nenhum dos meus salvadores sabe quem eu sou. Tampouco eu sei quem eles são. Decido a começar as resoluções para o ano que se abre. A primeira delas é evidente: conhecer os vizinhos, talvez manter com eles uma relação para além do bom dia, tarde, noite.
Meio alheios a mim, os vizinhos da festa se animam entre eles, mais uma vez: falta um minuto para começarmos um novo ano. Minha nova dúvida: será um ano de prisão ou de liberdade? Conseguirei sair dali em menos de um minuto?
Ouço um estalo. Temo serem fogos de artifício, mas senti-o por quase todo meu corpo. A menos que os tenham soltado dentro do poço, estou certo de que o barulho não foi pirotécnico. Novo estalo, seguido de uma agitação. O elevador estremece, e junto com ele as pessoas. Seus gritos, contudo, são de felicidade. Não ouviram os ruídos, ignoram meu perigo.
Começam a contagem. Já não tenho mais esperanças de começar o ano do lado de fora. Ao menos terei uma história para contar, penso, quando chegar junto aos meus. Vou abraçá-los três vezes mais forte, como se para compensar o erro de não ter-lhes visto nesse momento tão simbólico.
Dez. Novo estalo. Nove. Outro estalo. Oito. Levanto-me em agonia. Uma forte agitação.
O elevador despenca. Meu grito se mistura aos dos vizinhos, que já parecem não se incomodar com minha situação. Meu grito, sim, que será o primeiro do ano, mas também o último, e também nenhum. Uma árvore não faz barulho caindo numa floresta de gritos?
Eu, que ficara preso não apenas entre dois andares, mas na transição entre dois anos, entre duas festas, entre céu e Inferno. O elevador vai cada vez mais rápido em direção a este. Três, dois, um.
Morre o ano. Passo eu. Feliz

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

O noitifalante

A coisa começa assim: com uma palavrinha só. De repente, minha filha, ele desata a discursar de presidente. Comigo foi assim mesmo, você precisa é de ouvir.

A gente sempre dormiu agarradinho, mesmo depois de tanto tempo de casados. Eu me pegava até dando a mão para ele no meio da noite, que era para ver se ele não saia flutuando, sabe? Até o dia em que eu, sem querer, acordei. E ouvi, menina: ouvi ele dizendo pra alguém, sozinho, que me amava. Eu me derreti. Ele ainda me amava! Olha, que encontrar homem que te ame até dormindo não é artigo que se veja! Ele tava sonhando comigo, só podia era de ser.

Na noite seguinte, a mesma coisa. Engraçado que era na mesma hora. Eu nem parei para reparar, não, é que olhei assim, e reparei. Três horas, e ele disse de novo que me amava. Eu rederreti.

O corpo viciou, menina. Eu despertava todo dia só pra ouvir a rádio meu amor dizer o que dizia. A música era a mesma, mas eu é que não era. Cada dia era tão mais bonito de ouvir aquilo vindo daquele corpo sonolento!

Assim a gente foi se indo, ele me amando em palavras de noite, eu derretida o resto do dia.

Eu fazia questão de nem contar pra ele. Ficava quietinha. E se ele se policiasse? Imagina, que eu ia destruir a minha alegria noturna de cada dia? Me bastava ouvir.
Se existe voyeur, pra vista, depois eu procuro a palavra que serve pro ouvido.

Ele nem estranhava a minha alegria. Às vezes, menina, me dava uma coisa com isso. Eu danava a achar que ele sabia, que ele fazia só pra resgatar o nosso amor. Mas se mentia, mentia tão bem que eu acreditava – e eu queria acreditar, então casamos, e eu esquecia aquela coisa que me dava.

Às vezes o amor crescia. Ele dizia que me amava, e muito. Dizia que me amava, e pra sempre. Dizia que me amava, e muito e pra sempre. Teve um dia, menina, que ele recitou até poesia pra mim, mas eu nem entendi.

Ele passou a mudar de assunto, e a falar cada vez mais. E eu fui murchando de pouquinho em pouquinho. Eu acordava era na esperança de ele dizer A, ele vinha e dizia Bê e Cê!

Eu quis gritar com ele, mas não.

É claro que meu bico ficava do tamanho da lua, mas fui mais esperta. Era melhor ficar calada, que, naquela inconsciência toda, ele podia soltar uma, e eu pegava. Se ele estivesse me traindo, com certeza ia se trair também.

Enquanto isso, ele nem aí, menina.

A coisa toda continuou. Sete noites seguidas, ele falando de tudo, menos do amor que antes me tinha. E se ele já não gostasse mais de mim?

Até que um dia ele quis me largar. Eu já sabia, eu já previa, já preouvia. Perguntei se ele tinha uma amante, já quase adiantando aquilo que eu queria ouvir. Ele ficou foi uma arara, me chamou de todos os nomes. Disse que acreditava em muita coisa, só não no meu cinismo.

Encuquei, menina. Resolvi perguntar, agora já sem adiantar o que viria, o que tinha acontecido. Virei cínica mais cinco vezes antes de saber: quem tinha um amante era eu. Fiquei injuriada! Como uma coisa dessas? Eu que sempre fui tão franca. Eu, que só escondia dele o que ele mesmo fazia e nem lhe causava mal.

Ele saiu, eu aflita. Voltou com um gravador na mão. Botou pra tocar: no que eu ouço eu mesma falando o que ele me revelou há pouco tempo.

E aí eu entendi, menina, entendi que eu também falei dormindo.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Em seu lugar

Mortos os pais da casa hereditária
Nele surgiram ganas de descarte
E arrumação. Começa por um quarto
Que por raro ter sido destrancado
Ainda era bem iluminado,
Fora alguns cantos. Ao centro do quarto,
Gavetas que contêm cartas de amor

As lê rapidamente, e então as rasga,
E as joga pelo chão, exceto uma
Com um poema que ele não entende.
Esta ele põe de volta na gaveta

Um relógio de pêndulo atrapalha
A passagem, e é posto à parede,
E já não tique taca a mais ninguém.

Numa das caixas que há pelo aposento
Escreveram “não abra”. Ele obedece.

Há papéis pelo chão, e há insetos.
Documentos, baratas, comprovantes,
Certidões e formigas: vão ao lixo.

Abre um baú, e nele não há nada.

Um velho álbum de fotos empoeirado
E amarelo de tempo causa espirros
E cai dele, do homem, uma lágrima.

E ao fim desse trabalho que, decerto,
Dura mais do que contam estes versos,
Façamos o balanço do que ganha:
Sai um pouco mais leve pelo espaço
E muito mais pesado de lembranças.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Bichinho

Pousou um bichinho desgraçado no meio da minha testa.

Meu primeiro impulso é o de esmagá-lo com toda a rapidez e fúria de alguém cujo sono é interrompido aos primeiros raios da manhã. Logo me recordo de que não existe essa possibilidade: tenho braços, pernas e troncos imobilizados devido a um acidente pouco importante.

Balanço o quanto posso a cabeça – muito pouco, na verdade – e nada: ainda sinto suas patinhas em mim.

Se ao menos soubesse com que espécie estou lidando! Mas não há espelhos ao alcance da vista, de modo que só me resta confiar em meu tato e minhas notáveis habilidades de reconhecimento biológico com a fronte.

Ora, sinto-lhe pequeno, o bichinho, logo tenho a inútil certeza de que não se trata de uma águia, muito menos de um dragão. Sei também que chegou em mim pelo ar: estão, pois, doravante, descartados todos os peixes, os cães e as serpentes. As baratas não estão descartadas (rezo baixinho para que não seja de fato barata. Barata é tristeza).

A enfermeira do quarto dorme discretamente no corredor. Vejo-a pela janela de vidro, de costas e de cabeça pendente. Eu deveria era repreendê-la (as patinhas fazem cócegas devagar – o bicho se move sem sair do lugar), afinal podia não se tratar de um caso de bicho-na-testa: um meteoro, uma labareda. Deveria, sim, gritar, fazê-la sentir-se culpada por cochilar em serviço e despertá-la com um susto. Mas não grito: o grito, deixo-o para quando precisar de verdade. E, aliás, essa coisinha em mim já nem me incomoda – exceto talvez pelo fato de ainda não saber sua origem.

E, depois, é divertido brincar de imaginar-me ornamentado com uma borboletinha azul e roxa. Ou mesmo ter me tornado altar para um louva-a-deus qualquer.

Altar, não. Sai, louva-a-deus. Tento assoprar na direção do ser, mas sou impedido – traído! – pela minha própria anatomia nasal. Meu melhor resultado é sentir as patitas que me acariciam de leve. Abelha, joaninha ou besouro, até que é um negócio gentil.

De esguelha, consigo ver a enfermeira, que acorda. Como para se redimir do erro, entra de pronto no meu quarto sem dizer uma só palavra. Esfregando delicadamente seus olhos, pergunta bondiosamente: precisa de alguma coisa.

Respondo-lhe: faz favor de tirar isso de mim, que me pinica.

Ela retruca: que isso? Não tem nada aí, isso deve ser ideia da sua cabeça.

E a ideia parou de coçar.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

[Desafio] Doroteia

No meigo olhar da loura Doroteia.
Aqui me encontro, preso e refletido
enquanto a beijo. A atitude é feia
- abrir os olhos – mas é divertido
mirá-la assim a fundo, tão de perto.
E ela é linda, porra: não tô certo?

Não interessa mais: só quero o beijo,
E sentir o seu corpo que em mim roça.
Quando paramos, arrisco um gracejo:
“Você tem costas largas pr’uma moça”
Ela se ri, e me diz: “Preocupa não:
eu era campeã de natação.”

Além do nome, agora disso eu sei.
Vou lhe explicar como se sucedeu:
Ficamos rápido, nem perguntei
“Qual é teu signo? Que time é o teu?”
Afora o nome, não perguntei nada.
Nem todas são assim: descomplicadas.

Agora, conversamos sobre a vida,
e, no momento, falamos de tudo:
Sexo, carreira, futebol, bebida...
(“Conversamos”, nem tanto: fico mudo,
ela monologando, tão profunda.
Enquanto isso eu espio sua bunda)

Até presto atenção na ladainha
- eu não ouço com o olho: é c’os ouvidos,
mas não pense que ela é assim bobinha:
também me lança olhares atrevidos.
O olhar é meigo, e embora tão materna,
sei que mira o que eu tenho entre as pernas.

Cansado de ouvir e olhar, a agarro.
Ela se esquiva, e me agarra mais forte,
se achega e, então, pergunta: “no meu carro?”
(Meu Deus! É hoje o meu dia de sorte!)
E vamos, eu na frente e ela atrás
Mulher igual: não vejo nunca mais.

E estamos nessa esfregação que só,
mas algo aqui não é do meu costume...
Olhando bem... aquilo é um gogó?
E isso aqui embaixo, é um volume?
Agora sei porque igual nunca vi:
Caralho! Doroteia é travesti!

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

[Desafio] Cárcere

Queria aproveitar tudo, muito, sempre. Mas com ela ao meu lado, não aproveitaria nada, nunca. E ela me prendia. Eu era seu. Objeto único de sua loucura, objeto pleno de sua demência. Eu ainda levo nos pulsos as marcas das algemas de ferro; nos pulsos, levo a humilhação do confinamento, da privação e da escuridão. Eu não tomava sol, nunca, minha pele estava pálida -- não, esverdeada. Ainda lembro das moscas que pousavam em mim durante o dia, e eu fazia o que podia para me debater. A sujeira, Deus, a sujeira. E a comida, se aquilo podia ser chamado de comida.
Levo nos meus olhos doloridos, agora mesmo, enquanto essa lâmpada nua me estupra, as cicatrizes da clausura. Levo nos meus ouvidos, os mesmos que agora são invadidos pelo ruído insuportável dos cliques do gravador de fita cassete, os ecos das trancas, chaves e correntes do calabouço que ela chamava de quarto. Lembro da voz doce dela. Eu ouvi tudo o que ela tinha a dizer; cada palavra, cada soluço, cada perdigoto que aterissava no meu rosto e eu não tinha mãos livres para limpar.
Eu aprendi a não pedir. Eu aprendi a ficar calado. Antigamente, eu rosnava, eu grunhia, eu rugia alto, até ficar vermelho, vomitando fúria e tripas. Ela me olhava calmamente e me dava uma porrada. E depois outra. Um dia ela até levou uma faca. Foi bom para sair da rotina. A expressão no rosto dela não mudava; um meio-sorriso, uma sobrancelha erguida, o cenho suavemente franzido; e as unhas. Enquanto ela sentava na velha cadeira e me observava, ela batia as unhas no encosto de braço, o único tique-taque que ouvi, pois lá embaixo não havia relógios. Nem janelas. Eu não sabia o que era noite e o que era dia. Uma vez eu perguntei que horas eram. Prefiro não falar do que ela fez.
Agora mesmo, enquanto minhas costas são violentadas pela almofada da poltrona, eu sinto o ar parado. Aqui fora, o ar se mexe. Lá embaixo não era como aqui fora; eu só sentia vento na hora de levar porrada na cara, ou em outros lugares. Mas o meu favorito era o ferro de queimar. Ela vinha com ele -- e nesses dias o sorriso era quase inteiro -- e me deixava listrado que nem uma zebra. Nas perguntas que você faz, as palavras que você usa são diferentes. Ela não falava assim comigo. Na verdade, ela nem falava tanto comigo, mas era a única voz que eu ouvia, e mesmo sem poder responder, era o mais próximo que tinha de uma conversa.
Isso ela nunca fez, não me pergunte por quê.
Teve uma vez que ela me deu uma comida diferente. Ela disse o que era, mas eu esqueci. Tinha um gosto bom. Pensando agora, não sei se era bom mas não era o que ela costumava servir. Às vezes, à noite, isso você não pode contar pra ela, eu falava. Eu cochichava dentro da minha cabeça, bem baixinho, pra ela não ouvir. Uma vez ela ouviu, mas não pergunta o que ela fez. Não, não foi isso. Isso ela nunca fez.
Faz uns dez anos. Em que ano estamos? É, dez anos. Eu não tinha espelho. As únicas coisas que eu via eram a parede, o chão, o teto, o meu corpo (mas nunca os meus pulsos ou meus tornozelos) e ela e os nossos brinquedos. Tudo dentro da masmorra. Ela me limpava. Não sei. Não, isso ela nunca fez.
Nunca troquei. Não sei mais que cheiro tem. Só conheço o meu cheiro e o dela. Ela cheirava sempre bem, e eu sempre mal. Mas era assim que sempre foi. Ela se sentia bem do meu lado. Vivia falando isso, que eu fazia bem pra ela. Eu não lembro como aconteceu, acho que ela simplesmente me soltou. Pode ser, mas eu não tinha movimento. Todo eu era frágil, e cambeleava sem sair do lugar, era bem patético.
Não, isso ela nunca faria.