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quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

O noitifalante

A coisa começa assim: com uma palavrinha só. De repente, minha filha, ele desata a discursar de presidente. Comigo foi assim mesmo, você precisa é de ouvir.

A gente sempre dormiu agarradinho, mesmo depois de tanto tempo de casados. Eu me pegava até dando a mão para ele no meio da noite, que era para ver se ele não saia flutuando, sabe? Até o dia em que eu, sem querer, acordei. E ouvi, menina: ouvi ele dizendo pra alguém, sozinho, que me amava. Eu me derreti. Ele ainda me amava! Olha, que encontrar homem que te ame até dormindo não é artigo que se veja! Ele tava sonhando comigo, só podia era de ser.

Na noite seguinte, a mesma coisa. Engraçado que era na mesma hora. Eu nem parei para reparar, não, é que olhei assim, e reparei. Três horas, e ele disse de novo que me amava. Eu rederreti.

O corpo viciou, menina. Eu despertava todo dia só pra ouvir a rádio meu amor dizer o que dizia. A música era a mesma, mas eu é que não era. Cada dia era tão mais bonito de ouvir aquilo vindo daquele corpo sonolento!

Assim a gente foi se indo, ele me amando em palavras de noite, eu derretida o resto do dia.

Eu fazia questão de nem contar pra ele. Ficava quietinha. E se ele se policiasse? Imagina, que eu ia destruir a minha alegria noturna de cada dia? Me bastava ouvir.
Se existe voyeur, pra vista, depois eu procuro a palavra que serve pro ouvido.

Ele nem estranhava a minha alegria. Às vezes, menina, me dava uma coisa com isso. Eu danava a achar que ele sabia, que ele fazia só pra resgatar o nosso amor. Mas se mentia, mentia tão bem que eu acreditava – e eu queria acreditar, então casamos, e eu esquecia aquela coisa que me dava.

Às vezes o amor crescia. Ele dizia que me amava, e muito. Dizia que me amava, e pra sempre. Dizia que me amava, e muito e pra sempre. Teve um dia, menina, que ele recitou até poesia pra mim, mas eu nem entendi.

Ele passou a mudar de assunto, e a falar cada vez mais. E eu fui murchando de pouquinho em pouquinho. Eu acordava era na esperança de ele dizer A, ele vinha e dizia Bê e Cê!

Eu quis gritar com ele, mas não.

É claro que meu bico ficava do tamanho da lua, mas fui mais esperta. Era melhor ficar calada, que, naquela inconsciência toda, ele podia soltar uma, e eu pegava. Se ele estivesse me traindo, com certeza ia se trair também.

Enquanto isso, ele nem aí, menina.

A coisa toda continuou. Sete noites seguidas, ele falando de tudo, menos do amor que antes me tinha. E se ele já não gostasse mais de mim?

Até que um dia ele quis me largar. Eu já sabia, eu já previa, já preouvia. Perguntei se ele tinha uma amante, já quase adiantando aquilo que eu queria ouvir. Ele ficou foi uma arara, me chamou de todos os nomes. Disse que acreditava em muita coisa, só não no meu cinismo.

Encuquei, menina. Resolvi perguntar, agora já sem adiantar o que viria, o que tinha acontecido. Virei cínica mais cinco vezes antes de saber: quem tinha um amante era eu. Fiquei injuriada! Como uma coisa dessas? Eu que sempre fui tão franca. Eu, que só escondia dele o que ele mesmo fazia e nem lhe causava mal.

Ele saiu, eu aflita. Voltou com um gravador na mão. Botou pra tocar: no que eu ouço eu mesma falando o que ele me revelou há pouco tempo.

E aí eu entendi, menina, entendi que eu também falei dormindo.

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