Desafio da Última Linha

Acompanhe aqui as sugestões de cada um:

Desafio dos Neologismos - Encerrado
Desafio dos Títulos -Encerrado


segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

[Desafio] Me chama de chão!

tomei tua cachaça pra ficar sóbria o bastante para talvez te esquecer, mas, e agora, o que me resta? umas roupas rasgadas no armário, umas poucas idéias na cabeça – dentre as quais você vaga e não sabe – e teu cheiro permeando a minha sala, que eu não arrumo desde que você veio aqui, a vez em que eu atingi tal êxtase que, desde então, acabei por me esquecer de viver – mas não de você – até que cheguei no ponto em que me encontro agora, mesmo que não entenda muito bem onde estou; só você sabe o que acontece comigo no momento, porque você está dentro de mim (não literalmente), meu bem, então te peço: me explica. me conta o que eu faço agora que você não está aqui pra que eu seja sua, pra que você me arranhe, pra que você me (sub)meta; eu que por muitas vezes fui teu capacho, aquilo em que você escarrou e cuspiu e bateu e agora simplesmente descarta como algo que te dá asco, nojo, repulsa; me conta o que eu te fiz pra que agora estejamos os dois nessa situação – na verdade, para que eu esteja nessa situação, porque você deve estar muito bem onde quer que esteja e eu, estou muito mal, onde quer que eu esteja, porque não sei – me conta o que eu te fiz pra que agora estejamos os dois nessa situação;
liga pra mim, mas se não ligar, me liga pra dizer que não vai ligar e, se resolver vir aqui, venha descalço e, por favor, não pisa em mim, mesmo que lembre que eu sinto um prazer monstruoso e vil e gosto quando você me chama de chão,

domingo, 28 de dezembro de 2008

Comunismo, e o porquê de não ter títulos

Não há Gorbatchev, Muro, Embargo: no final das contas, o Comunismo consome a si mesmo como uma vela. Até queima quem for idiota o suficiente para pôr o dedinho ali. Pelo menos o Capitalismo sobrevive a si mesmo.

Nesse sentido, o Capitalismo é como um emo, sempre se cortando, às vezes de leve, às vezes mais gravemente, mas sempre se recuperando. Já o Comunismo, ah, o Comunismo é como um roqueiro que começa bombando, exagera e morre num anominato entorpecido e decadente.

Bem feito aos idealistas idiotas, é tudo o que digo.



E "Long Live Santa Claus".

Esquina

Era um papo de manhã de Natal com minha mãe subindo a General Roca a caminho do metrô quando vi, encostado à parede externa de um daqueles bancos, se não me engano um Bradesco, um menino de rua, encolhido, agarrado às próprias pernas, chorando. Lispectoralmente, não paramos de andar. Minha mãe notou e fez sua usual expressão de pena, angústia, seeupudessefazeralgoarespeitismo. É uma pena, realmente. Não quis pensar em nada, mas sabia exatamente no que não pensar. Você sabe do que estou falando.

Como sou hipócrita, falso, consumista, egoísta, materialista, despreocupado, distraído, ocupado, sem tempo.

sábado, 27 de dezembro de 2008

Do fundo do baú ou Relíquia ou Devaneio ou Família ou, simplesmente, "II"

Cabe dizer que esse texto foi escrito por mim há quase dois anos e encontrado há quase dez minutos. Não vou corrigir possíveis erros de português. Deixarei tudo aqui, original, copiado e colado.

Hoje, num estado levemente alcoolizado, parei por alguns segundos e refleti sobre meu primo. Na verdade, refleti sobre a curiosa maneira na qual ele se alienava dos acontecimentos do mundo.
Talvez por morar mais longe ou por puro capricho, ele tinha uma maneira peculiar de se ausentar de todo e qualquer problema referente ao mundo.
Nunca o vira falar sobre a AIDS na África ou o aquecimento global. Suas histórias mexiam com minhas emoções - fossem elas as tristezas, as alegrias ou as surpresas - mexiam com minhas emoções de um modo estranho, como se ele nunca tivesse sabido de tais problemas ou ainda que estes nunca tivessem acontecido antes.
Ele falava sobre coisas julgadas na maioria das vezes banais, como as músicas que ele compunha, as aventuras de mais um dia na roça - ele mora numa região meio interiorana do Rio de Janeiro, mesmo que estude Matemática no Centro - e todas essas histórias me cativavam como se eu não tivesse mais nada a me preocupar, apenas seus quase-problemas.
O curioso de tudo é que sempre cobro das pessoas uma certa carga de problemas, mas dele, justamente dele, nunca me passara pela cabeça perguntar o que isso tudo tinha a ver com a problemática atual do mundo.
Não que ele fosse bom contador de histórias - aliás ele o fazia de uma maneira tão ruim quanto a minha: cheia de interrupções, mas estas eram de uma alienação tão curiosa que me deixavam à parte de todo aquecimento global, toda fome, tudo.
Ele compunha músicas - sim, meu primo é o que se pode dizer de um poeta....uma pessoa poética talvez...com uma poesia ímpar de alguém que não se preocupa com o que acontece com o mundo atual, mas não causa diferenças gritantes na não-preocuoação sobre um pé-de-cana, ou sobre alguma coisa em inglês furado,ou ainda sobre amor e falta (falta essa de preocupação para com o amor?)
Lembro de um trecho de uma música que dizia alguma coisa sobre "cantar uma música sobre você num bar vazio e, ao abrir os olhos, não haver mais ninguém ouvindo".

Enfim, meu primo é uma pessoa curiosamente peculiar.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

[Desafio] Cancelado Devido a Chuva

Sabe aquele momento em que sua vida será resolvida? Pois bem, era no qual ela se encontrava. Doze anos sem vê-lo. Doze anos a esperá-lo. E finalmente acontecera.

Construíra uma vida, é bem verdade, e uma boa. No entanto, nunca vivera. Escolhera um marido que não se importava com suas ausências mentais, seus filhos achavam que era só seu jeito de ser. Depois de tanto tempo, ninguém se importava mais em interrogá-la, ninguém se lembrava mais como ela era e suas distâncias passaram por envelhecimento. Quisera ela ter se tornado tão sábia quanto a consideravam nesses momentos. Pouco era necessário para desencadear seus devaneios. Por vezes, o barulho do vento era suficiente.

Questionara-se, também, há tempos, se não estava enlouquecendo. Concluíra que não. Se enlouquecesse, o estado senil impediria a saudade de sufocá-la nesses momentos. Além do mais, não tinha status para tal. Não fora tão culta ou tão altruísta que lhe garantisse o direito.
Perdera-se em devaneios mais uma vez. O tempo estava passando e, se queria alcançá-lo ainda nos portões da cadeia, deveria sair agora. Olhou pela janela e percebeu que o motivo de seu retorno à realidade fora a chuva torrencial que caíra sem aviso. Sempre havia chuva nessa época do ano. Fora nessa mesma estação em que se conheceram. Ela o viu pela primeira vez saindo de seu escritório na praia do Flamengo...

Pronto. Voltara a seus devaneios.

Quanto ao momento em que sua vida seria resolvida? Cancelado. Até a próxima lucidez.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Quatro parágrafos para te salvaguardar

Quando as sirenes chegaram e te levarem a outro lugar: lembra meu rosto te dizendo adeus, lembra minhas mãos, agitando o vento da gare. Congela aquele instante, porque eu, eu vou me salvar; e tu, eu não sei.

Escondi as provas num caminho isolado, numa cabana abandonada na floresta; lá onde as sombras desenham contornos na terra. Procura na escrivaninha mofada, uma das suas gavetas conterá tudo o que ninguém pode ver.

Não te preocupes: guardo comigo uma foto tua antiga, em que me olhas um sorriso descabelado e desconfiado. Está na minha carteira, aquela velha de couro falso; o tom sépia do teu rosto vai me fazer esquecer a fuga.

Pensa bem, meu amor, nosso romance será escrito pelo telefone, entre orações bêbadas e arrependimentos, e descuidos, e confissões chorosas. Construiremos, pensa bem, um legado de saudade e crime, a nossa história.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

No elevador

De início houve o estranhamento, que não foi mútuo por razões óbvias.
Edward Meener encontrava-se num elevador fechado, levemente escurecido pela falta de uma lâmpada e ao lado de um morto.
Havia um morto ao lado de Edward, em cima de uma maca, sem razões lógicas e plausíveis.
A situação era absurda como um sonho, pois ninguém deixaria um morto numa maca subindo e descendo os elevadores do único prédio residencial da Tina Ulson St.
Mas era real.

Depois, houve a dúvida.
Há quanto tempo estaria ali. Quem era.
Nunca vira o indivíduo no prédio - não que fosse dos vizinhos mais sociáveis.
Porque ali. Porque não tomei as escadas.
A resposta desta, entretanto, era simples: eram quarenta e cinco andares. Ir de escada era simplesmente exaustivo demais.
Pois então, que aceitasse o castigo divino à sua preguiça: andar no elevador ao lado do morto.
Estaria mesmo morto.

Então, houve o medo.
O medo não precisa de explicação, porque todo o mundo teme a morte.

E houve a espera.
Quarenta e cinco andares que não passavam nem sob toda a reza que Edward Meener fazia. É claro que era da boca para fora, por que ele nunca acreditara nessas coisas de deuses.

E houve a esperança.
Quando o elevador se aproximava do andar, ouviu-se um baque surdo e ele parou.
Que piada: entre dois andares, dentre eles aquele no qual Edward sairia do elevador rumo à sua liberdade.

Então houve o terror, que vem do medo, que não precisa de explicação, porque todo o mundo teme a morte.

E mais espera houve, mas dessa vez ela não vinha acompanhada de reza. Era acompanhada de um Edward encolhido no canto do elevador, de modo que não mais conseguia ver o morto em cima de sua maca.
O morto causava um pânico tremendo nele, mesmo que não movesse um músculo.

E houve a esperança, mais uma vez.
O elevador voltou a funcionar, ao mesmo tempo em que se ouviu uma voz amigável e feminina dizendo que houve uma rápida queda de energia e que tudo estava sob controle.

Enfim, houve o alívio, porque Edward saiu do elevador (incrivelmente suado) e tomou o rumo que tomaria normalmente, ainda um pouco abalado e sem nenhum arranhão, até porque não havia a possibilidade.
Porque o morto continuava sem mover um músculo.

sábado, 13 de dezembro de 2008

[Desafio] A Máquina do Mundo

Disse: "eu sou a máquina do mundo",
Inclemente, sem dó, enfiou a faca.
Lâmina de pureza, era uma estaca
escarlate no corpo moribundo.

Parou e viu a nascente de morte,
Que num riacho se desenvolvia.
Engrenagens de inércia e mais-valia
Escorriam da chaga fina, o corte.

Desceu as ancas, formou-se num lago.
Viu tudo, entendeu tudo! Era o norte!
"É o saber e a verdade que trago!"

Larga a faca e sai louco, vagabundo.
Sirene, dinheiro, mentira, morte:
Ia encontrar a Máquina do Mundo.



Meu desafio:

"Cancelado devido a chuva".

O pornógrafo

Nas ruas elétricas de uma megalópole abandonada corria o pornógrafo por debaixo de chuva forte atrás do ônibus respirando fumaça e ondas de rádio no concreto plúmbeo industrial molhado de lama cinza, atrás da virtude roubada dos velhos tempos dos sonhos siderais de uma sociedade branca espacial, sua calça jeans suja da velha água roedora dos bueiros malcheirosos, suas meias de algodão processado ensopadas num incômodo carbônico.

Corre, pornógrafo, você chega lá.

O condutor se comiserou e parou o veículo metálico com um ganido desproporcional de efeito cinematográfico e o pornógrafo entrou no ônibus com um falso sorriso de alívio e arrogância, despejou sobre os ásperos calos do trocador o dinheiro com cheiro forte de níquel velho e forçou seu corpo oncológico a girar a roleta sólida com um ruído estridente de passagem para se sentar num banco rasgado com pixações profanas perto de uma janela quebrada com um puxador que parecia cortante.

Espera, pornógrafo, você chega lá.

Foi assolado por pingos finos e gelados de uma chuva corrosiva durante toda a viagem até chegar ao ponto de ônibus de sua casa e desceu para acelerar o passo fatigado da rotina de nojo até o portão do prédio, tateou pela chave de alumínio no bolso do sobretudo e abriu a porta com triunfo prosaico de desconcerto para ver o apartamento adstrito empoeirado e mal iluminado com um único foco de luz amarela débil e vacilante como o instinto e a moral.

Arruma, pornógrafo, você chega lá.

Tomou coragem e pôs-se a organizar a mobília e os objetos e a tirar o mofo parasítico de sua morada suja durante toda a madrugada enquanto trovões reverberavam zombarias e relâmpagos crebros discotecavam num pulso narcótico e limpava, esfregava, cuspia e suava com a obstinação quase demoníaca de um obsessivo recém-descoberto, tudo para que pela janela entrasse a manhã sadia e arrumada e as buzinas descompassadas da impaciência do dinheiro.

Descansa, pornógrafo, você chega lá.

O corpo envelhecido exausto se atirou no sofá há pouco ajeitado e deixou-se respirar da atmosfera metropolitana poluída e pervertida de desapego e egoísmo num desvario gosmento de roncos e câncer enquanto um assobio lúgubre escapava e se recolhia dentro de seus pulmões tomados por velhas cinzas contumazes de uma juventude ébria em excessos e vaidades e loucuras mórbidas.

Dorme, pornógrafo, você chega lá.

Enterrado na terra viciada pelo esforço exacerbado de demência moribunda sua carne acre era digerida pelos vermes hiantes que salivavam ácidos acerbos nos esfumaçados globos hialinos de devassidão e de doença que em breve seriam litocarpos infames a tropeçar para dentro de um oblívio edáfico de podridão das obsecrações obliteradas dos perdidos e dos fracos das cidades de pornógrafos.

[Desafio] Me chama de chão

Me chama, me chama de novo (grita o meu nome), me pisa, me arranha (arranha a tua garganta), me berra, me brada, me urra, me morde, me dói, me machuca (grita o meu nome mais alto) (urra o meu nome).

Me sê, me entra, me dá, me recebe, me sai, me everte.

(Deixa eu ser teu, teu pertence, todo teu, teu todo, tua coisa, teu objeto quotidiano, tua coisa de cumprir tarefas).

Me usa, me usa, me usa, me faz, me compra.

Me rasga, me rabisca, me contorce, me distorce, me fode, me sua, me respira (entra), me constrói, me destrói, me constrói, me destrói, me desdiz, me desfaz.

Me arrasa, me amputa, me arranca, me afasta, me aposta, me atesta, me estaca, me esfaqueia, me atira, me olha, me pisca. (Rasga o meu nome enclítico).

Me sê, me está, me tem, me põe, me tira.

Me joga, me quebra, me ri, me gargalha, me chora, me pranteia, me prateia, me enterra, me cospe, me mija, me assa, me dorme.

Me olha (com desprezo), me vai, me vem, me escolhe, me traz, me leva, me escolhe, me traz, me leva, me vive.

Me pisa, me cala, me chama de chão.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

[ Desafio ] O Fim de Uma Era

Estou contando os dias para que tudo acabe, e sei que será um momento feliz. Se eu bebesse provavelmente estaria programando a bebedeira do século, porque esse ano já deu tudo que tinha que dar e mais um pouco, e eu estou cansada.
Mas é aí que entra a parte chata, e não me refiro a minha abstinência alcoólica. Quando janeiro chegar e eu fizer o que vai ser a última prova do ensino médio eu vou dar adeus a 12 anos da minha vida.
Por sete desses anos, eu tive a companhia de algumas pessoas que, pra mim, são as melhores do mundo. Três desses sete foram os melhores que eu poderia desejar, e digo isso pesando o bom e o ruim. E, em um dia, tudo vai acabar: eu não vou mais vestir a velha camisa branca, não vou ver as velhas pessoas, não vou passar pelos mesmos lugares.
O Adeus sempre pareceu complicado pra mim. Agora eu me vejo chorosa, sofrendo de saudosismo antecipado, querendo rir tudo que ainda não ri. Fico pensando no que vai acontecer daqui pra frente, se algo vai se salvar, lembrando de pequenos detalhes e coisas antigas que achei que tinha esquecido. Pensar no CAp é difícil. Odeio, sem dúvidas. Amo.
Foi lá que eu cresci, física e psicologicamente ( apesar de alguns afirmarem que ainda me comporto feito criança ), e se hoje eu sou o que sou, é culpa quase que exclusiva dele e de seus alunos. Vou fazer visitas nos dois primeiros anos, e depois vou parar, mas estarei no baile dos cem anos.
Vou chorar triste e feliz ao mesmo tempo. Vou levar uma vida, as melhores amizades (porque mesmo que acabem serão sempre as melhores), uma cabeça melhor, lembranças da melhor turma de terceiro ano. Vou levar fotos, nomes e histórias. Vou levar memórias e uma camisa pichada, dessa vez pra nunca mais lavar.

E vou guardar esse texto brega e cafona, que espero substituir por outro a altura de tudo que eu quero dizer.


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Proposta: Me chama de chão!

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Caju.

Aula de Geografia: “Brasil vem aumentando as exportações de fruticultura, principalmente mangas, laranjas e cajus.”

Caju! Sinto meu vício reacender.

Intervalo.

Suco de caju.

Cantina. Carboidratos. Gorduras. Nocivo.

Nada saudável.

Desejo volta à caixinha do suco.

Coca-cola.

Sala.

Maldito consumo.



ps.: Mantenham os desafios durante as férias, pois pretendo respondê-los.

domingo, 7 de dezembro de 2008

Aposentadoria

Venho aqui dizer-lhe o porquê de ter me aposentado assim, tão cedo. Não foi por invalidez, não foi por tempo de trabalho, não foi por idade. Aposentei-me, amigo, por excesso de humanidade.

Foi adolescente que inspirou-me a luz de tornar-me massagista. Entretanto, já em dois meses de trabalho, não havia controle emocional que suportasse meu infeliz fardo.

Talvez você, que lê, pense que se trata de uma profissão fácil, comparável, quiçá, à das prostitutas: pagas para proporcionar prazer para pessoas pesadas de tanto trabalhar. Meu dever era o de tirar o peso do mundo dos ombros dos outros.

Mas quem dera, meu caro, que fosse para sempre. Eu, ao mesmo tempo em que era anjo redentor do sofrimento alheio, era o carrasco que tinha o triste dever de retornar cada um a sua respectiva via-crucis.

Conseguia ser o criador e o destruidor das paisagens mais belas: campos de gramados verdejantes e jardins de tulipas vermelhas sob um céu azul e límpido tornavam-se novamente a selva de pedra em que cada um de nós existe.

Era a pura expressão viva do "tirar doce de criança". Para quê aliviar suas dores, se era obrigado a deixá-la no lugar onde a encontrara, como ela fosse um brinquedo com o qual brincamos, interagimos, modificamos e guardamos?

Se fui, amigo, um canal anestésico da angústia de alguém, prefiro que não tivesse feito, pois mais vale a dor que passam do que a nostalgia do que nunca poderia ter sido.

[ Desafio ] Os 11 Motivos do Jacaré

Jacaré um dia resolveu virar bolsa, dessas tipo favorita de madame que não saem de debaixo do braço. Comunicou a decisão aos amigos de espécie que prontamente lhe perguntaram os motivos. Como explicar demorasse muito tempo escreveu tudo numa lista e entregou aos companheiros, que lhe bombardearam de perguntas.
É fato que o jacaré tava se sentindo só e tinha achado na madame uma companhia mais que agradável. Os outros balançaram o rabo em negação dizendo que aquilo era motivo bem do fajuto e que tinha muita da fêmea por ali. “ Mas eu já to cansado dessas jacaré fêmeas, desculpe as amigas que me escutam, que tão com dois em cada hora e dia seguinte fingem que nem conhece quando vê passar na lagoa”. Concordaram todos que podia bem ser verdade, mas que uma decisão extremista daquelas não era necessária, que bem que ele podia se arrepender depois. Jacaré então calou todo mundo dizendo que não era nada definitivo não e , sendo o caso, era só pedir seu couro de volta e retornar pra sua caverninha lá perto da lagoa mesmo.
Prosseguiu a discussão com mais meia dúzia de motivos que a censura e o horário não me permitem dizer, mas que fez as fêmeas ouvindo revirarem os olhos “ jacarés, humpf!” (porque Jacaré não queria mais saber dos relacionamentos de jacarés, mas foi de forma bem jacaroística que essa história de ser bolsa começou.). E como os amigos continuassem a bater pata dizendo que não ‘tavam convencidos e que aquilo tava era muito mal contado, Jacaré abriu a boca e soltou o motivo final e secreto. ‘Tava era apaixonado e por demais e nada fazia ele mudar de idéia.
Passadas as horas e a despedida, a madame chegou pra buscar sua futura bolsa pra ter o couro arrancado fora, e o futuro acessório foi tão feliz e tão risonho que os de sua espécie acreditaram piamente no argumento número 10, de que Jacaré acreditava mesmo que aquilo era o que ele queria e que o deixaria muito do feliz.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

[Desafio] Os 11 motivos do Jacaré

Jacaré morava na lagoa do Tuiuiú e resolveu se mudar. Fez a burrice de contar pro papagaio, que tornou o fato comentadíssimo no reino do Seu Leão.

Como assim? Depois de tanto tempo? Que absurdo! Ninguém sai daqui! Vai nos abandonar!

Uma fuzarca geral, um auê, afinal se tratava de parte da milícia da floresta! Humano prudente não entrava na água não, só por causa de Jacaré.

Para piorar a situação, ninguém encontrava o raio do Jacaré em lugar nenhum. Perguntavam pra quase toda a fauna e nada de resposta.

E quede Jacaré? Tava em casa, arrumando as malinhas feitas todas de couro de gente, enchendo de casacos de pele, cabelo, barba, bigode e até pentelho (que horror!) tinha nas roupas.

Até que a coruja, muito da esperta, resolveu questionar o papagaio, até que se achou o Jacaré.

- Ora, que te levou a querer sair de nossa agradável companhia, seu Jacaré?
- Ih, dona coruja, as razões são muitas, mas já te digo que a agradável companhia não existe, não. Esses bichos não param quietos! Meu modo de vida não agüenta essa bagunça não.
- Mas não é só isso, é?
- Ah, dona coruja, vou te contar um segredo: ando co’as costas destruídas de tanto nadar assim.
Vou pro Nilo, pro Sena, pro Tietê, até pra Lagoa Rodrigo de Freitas eu vou, porque essas piranhas me matam!

E partiu, sem ouvir resposta e sem deixar de mandar uma banana pro macaco – ai que ódio desse mico barulhento!

O tempo passou e nem notícias do seu Jacaré, e todos (até mesmo o mico) sentiam falta do danado, até que um dia, voltando de uma temporada de férias, papagaio matreiro e fofoqueiro tratou logo de espalhar a tragédia: Jacaré tinha virado bolsa de uma tal de Madame Sofia, dona de um bordel chiquésimo em São Paulo.
O comentário foi recebido com um pio de suspiro da coruja, que virou pra papagaio e disse:


-Eu bem que ia avisar: piranha tem é em todo lugar.


Próximo título: A máquina do mundo

[Desafio] O belíssimo dia em que o sol se levantou mas a manhã não nasceu

Eu venho tentando buscar uma razão para tudo. Ando racional demais, nesses últimos dias. Preciso de uma raiz que me finque no sólido, oposta ao etéreo do meu mundo das idéias. “Árvore não voa”, ouvi há pouco tempo, numa conversa qualquer sobre exames psicotécnicos e a falta de uma linha simbolizando o chão nos desenhos representativos de árvore. Eu ando um pouco árvore sem linha de chão, por assim dizer.

Árvore que voa não dá fruto, porque não se alimenta de matéria. Não cresce. Isso talvez explique a minha súbita e irremediável falta de criatividade. Onde já se viu escrever sem linha? Deus escreve certo por linhas tortas e eu, escrevo por linhas, quaisquer que sejam.


E a minha razão precisa responder a vários porquês. Minha árvore sem chão se alimenta de porquês. Eu tenho me alimentado de porquês e de toda sorte de besteiras, das que fazem mal a longo-prazo.


Ontem terminei aquele livro de que te falei. Terminei e joguei longe – não porque desgostei, pelo contrário – joguei longe porque também estava me deixando mal. Eu tenho sido masoquista nesse ponto: me agrada aquilo que me faz mal, de livros a porquês.


Meus porquês são minha nutrição e meu veneno.


Hoje o sol levantou, mas a manhã não nasceu, não para mim. Estava quente, eu sentia, mas eu me mantive de janelas fechadas e blecaute, no meu universo, pra evitar a claridade. Passei o dia à maquina de escrever, procurando o que te digitar. Se te digito, faço-o sem linhas. Se te escrevo, busco as minhas linhas.

Eis o meu problema: Ando sem linha de chão, sem linha de escrita e, portanto, digito.


A verdade, entretanto, é que não há problema. Por que? Porque não há. Eis tudo.


O meu universo não tem chão e nunca teve, mas hoje eu percebo que eu preciso dele, às vezes. Não que isso seja um problema. Eu já te disse: não há problema.


Não enquanto eu não estiver no chão e começar a andar na linha.

sábado, 29 de novembro de 2008

Erratum

Agora são seis, as pererecas: comprei mais duas.

Aumento silenciosamente meu império... Eba!

("Errata" é o plural de "erratum"; embora não seja de praxe, faço uso do que julgo ser o uso mais correto: "errata" para uma coletânea de correções, "erratum" para uma apenas.)

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Talvez CAp

Talvez esse não seja o melhor lugar para dizer isso. Não ligo.

Talvez devesse sentir falta. Sentir falta de risadas, choros, amizades, traições, coleguismos, falsidades, provas, férias, viagens, fofocas, tempos vagos, zueiras, conversas. Talvez não.

Ou até talvez venha a sentir falta disso tudo. Não agora.

Infelizmente, o que, hoje, vou levar com certeza e que não é um talvez, são as tristezas, rejeições, humilhações, amizades perdidas.

Talvez algumas amizades fiquem. Sei que algumas poucas pessoas gostaria que ficassem.

Enfim acabou. Talvez exista a falta do CAp daqui a algum tempo. Provavelmente não. 

domingo, 23 de novembro de 2008

As Pererecas

Esta semana cheguei à brilhante conclusão: pererecas pulam. E não me refiro aos nossos amigos anuros, mas às simpáticas bolinhas de látex, diversão garantida para um dia de ócio. Eu poderia, leitor, simplesmente acabar o texto aqui, nesta secura lacônica. Mas acho que há mais do que pensamos a respeito das pererecas.

Nunca, creio eu, paramos para pensar sobre as pererecas o tanto quanto devíamos. Abusamos das coitadas a bel prazer, quicando-as sobre qualquer superfície que prometa algum entretenimento para nossas mentes satisfeitas… Será que há mais nas pererecas? Ou será que são apenas pererecas?

Pois eu, enquanto entusiasta (e leigo) da mitologia quântica, acredito serem as pererecas as sumas representantes de uma outra dimensão na terra. Assim como o pé grande representa uma, os extraterrestres outra, os pombos outra mais, etc. Descobri isso numa tarde muito lúcida de recreação com minhas quatro amigas alterdimensionais.

Eu, com o status de artista – profissional dos devaneios, se assim preferir –, tenho o dom para-psíquico de me comunicar com seres cuja linguagem nos é completamente estranha. Nunca conversei com o pé grande ou o chupa-cabra, mas tenho certeza de que, se o fizesse, bateríamos altos papos.

E foi fazendo uso desse dom que passei aquela tarde proseando jovialmente com minhas companheiras. Fizeram-me suas reclamações, todas bastante sensatas e devidamente justificadas: querem que paremos de simplesmente quicá-las por aí, elas têm o direito de escolher quando e onde querem dar seus pulinhos; querem, também, que parem de ser vendidas nas bancas de jornal (“é um absurdo”, me confidenciou uma delas, “que séculos”, corrijo-a, pois há menos de dois séculos, o que configuraria como uso correto o singular, “após a abolição”, oficial, “da escravidão, sejamos vendidas dessa forma, como animais”) a preços degradantemente baixos; etc.

Também me esclareceram acerca de mais uma coisa: não são feitas em fábricas, como imaginava, mas são fruto de reprodução sexuada em sua dimensão e vêm para cá como diplomatas. Sim, as bolinhas que maltratamos e de que malcuidamos (mas mui bem-amamos) são, na verdade, diplomatas. Têm escolaridade e o caralho a quatro.

Aliás, nem todas são bonitinhas e bem dispostas como nossas conhecidas daqui da Terra. Disseram-me que a grande maioria é feia, normalmente de tons pastéis ou até cinzentas, e não passa de uma “alcatéia de alcoviteiras ignorantes”, como muito veemente colocou uma outra de minhas colegas. Apesar da aparente arrogância que demonstrou, disse-me serem muito pacientes e tolerantes.

As pererecas são gente fina, educada, sincera, divertida, sim, mas elas também têm sentimentos, têm lá suas mágoas e suas psico-cólicas. Temos de mostrar um pouco nossa humanidade, ser bons anfitriões para nossas visitantes... Nunca se sabe quando podem arquitetar um plano maquiavélico de dominação interdimensional.

Para finalizar, atentem meu apelo: tratem bem as pererecas! Elas não são gente, mas são como se fosse!

domingo, 16 de novembro de 2008

Título é coisa de comunista

O seu rosto, outrora pradaria, tornou-se um cânion. Seco, árido, áspero, empoeirado. Reparou isso quando se olhou no espelho pela manhã, uma manhã de domingo, ou de terça-feira, eram todas iguais, e viu um velho. Mas ele não era esse velho. A pessoa que ele via no espelho não era ele.

A luz o enganava, mexia com suas idéias, pensava, pensava, matutava: e quem seria você, a pessoa do espelho. Ele se perguntou se seria realmente ele e confrontou a verdade: envelhecera. Mas não era aquela pessoa, não podia ser, não era. Pára de bobagem, disse aos velhos olhos enevoados e cinzentos, com aquele aspecto cinzento da senectude, aqueles olhos cinzentos que zombam, que dizem que você já está velho e cinzento e deve morrer para deixar de ser um fardo cinzento para o mundo.

Dessa vez decidiu encarar a verdade: era ele, sim era ele e nada podia fazer... Quando ficara assim? Olhava seu próprio rosto, a expressão inevitavelmente vazia e profunda de uma fotografia importante, todas as manhãs, todas as manhãs olhava seu rosto e nunca havia notado as diferenças. Sabia que já fora jovem, lembrava-se desses dias, gloriosos dias de juventude, liberdade, liberdade, de viagens, de amores, de entusiasmo. Como era delicioso o entusiasmo da juventude, aquela ânsia por conquista, por qualquer coisa, aquela ânsia pela complexão, pela integridade, pela totalidade, pela vida intensa e muita, muita vida, por viver muito de uma vez só, pelas garfadas cheias, pelos pratos cheios, pelo sexo, o sexo, o sexo era maravilhoso.

Não era mais jovem, mas isso não significava não ser mais a mesma pessoa de antes, de forma alguma, ser velho não quer dizer ser outra pessoa, ou quer, ou não quer, ou quereria, pensava, pensava, refletia, matutava, cogitava, era. Fazia um mapa do cânion inexplorado de sua face. Hoje em dia, comia pouco, dormia pouco, trepava pouco, celebrava pouco, sua vida era um saco, se soubesse que seria assim quando era jovem teria se matado há muito tempo e isso o perturbava por demais, pois não queria tentar imaginar como pensava que seria quando era jovem, porque há certas sensações que o cérebro é capaz de guardar e outras ele perde, ele perde, ele se esquece delas, assim, num estalar dos dedos ele as deixa para trás, ele não se importa, o cérebro é insensível, é uma máquina, é um computador, ele não pensa, ele não quer, ele não decide, ele faz, ele executa, é um robô, é um autômato, afinal, nós somos autômatos, nós somos todos robôs, somos formigas, formigas idiotas, inúteis, impotentes, impossíveis, os robôs são formigas e as formigas são computadores, e isso o perturbava, pois seu rosto era diferente e tudo era diferente, mas nem tudo deveria ser diferente, ele queria ser como era antigamente, queria envelhecer ao contrário, queria fazer o caminho inverso, mas isso ia contra as leis da biologia e contra as leis da física e contra as leis de tudo e do mundo, mas o mundo não é tudo, nem a matemática é tudo, então ele se esqueceu de o que tudo era e se lembrou do que achava que era quando era mais jovem, e tudo se embaralhou como um baralho sem naipes e só cheio de coringas, cheio de coringas como bobos da corte que dançavam e faziam ruídos impacientes, indolores, inocentes e impávidos com seus guizos mortos, eram mortos, eram de metal, eram robôs, os guizos eram pequenos cérebros, como formigas que tilintam, como taças, eram taças que embriagavam os reis, e quem eram os reis ele não sabia, e de repente havia um reino e súditos e uma rainha e plebeus, muitos plebeus, o mundo é feito de plebeus e de elementos químicos, e os plebeus são a tabela periódica e ele achou que tudo isso não fazia sentido, nem sentido fazia, não fazia sentido, não tinha lógica, nada mais tinha lógica, deixava sua mente fazer divagações loucas, como um parque abandonado arenoso, ou seria uma casa de shows, um sítio de espetáculos, onde havia uma parede tombada cheia de holofotes que não funcionavam e havia uns esqueletos cubóides, é, umas barras de ferro preto que juntas formavam cubos, cubos, eram cubos, como jaulas, mas só tinha as arestas e uns outros eixos, ou talvez não tivesse eixos, sabe, sem eixos, sem eixos, só arestas e vértices e fórmulas e remédios e velhice e morreu.

sábado, 15 de novembro de 2008

Título é coisa de comunista

Este texto não pertence ao desafio de títulos.

Este pequeno conto foi baseado num sonho que tive esta semana. É um tanto mais creófilo, mais violento, mais sanguinolento, mais perverso, mais twisted que meu costume. Que isso lhes sirva de precato. Não tolerarei comentários cujo principal objetivo seja advogar pela moral e pelos bons costumes ou qualquer palhaçada do gênero. Aceitarei, evidentemente, críticas ponderadas e justas de gente inteligente que saiba ler e escrever adequadamente, pois são eles os verdadeiros críticos. (Isso deve limitar o número de comentários, que já não é lá assim tão alto.)

Numa noite cor de sangue, a campainha tocou em sua casa. Ele se levantou do sofá, sacudindo a inércia que se alastrava sobre ele como um tumor maldito nas horas de televisão. Deu passos arrastados na direção da mesma porta de sempre, hoje mais vermelha que o costume.

O corredor era como uma artéria pulsante, vívida, sangüínea, vital. Perante si viu o menino, aquele mesmo de sempre. Sua pele alva estava coberta de chagas, arranhões, hematomas, cortes, pequenos riachos de sangue seco. Sua boca estava particularmente monstruosa, inchada e dormente, dando uma feição de alucinação febril ao seu rosto.

Sua expressão era distante, ao contrário do costume. Falou, uma fala escarlate, sangüínea: “Preciso...”, balbuciou, deixando sair da boca machucada um spray de sangue úmido e quente com uma tossida rouca e um assobio débil da garganta. Não conseguiu terminar a frase, mas estava óbvio que precisava entrar.

Fechou a porta atrás dos dois e viu o garoto sentado no chão em posição fetal, os braços arranhados abraçando as pernas, seus joelhos à mostra. Talvez balançasse para frente e para trás, mas podia muito bem ter sido a pulsação orgânica e rubra da noite.

“Os vizinhos...”, deixou sua garganta dar um assobio desesperado, “não me deixaram ficar lá”. Não sabia o que isso queria dizer, mas era evidente que não podia ficar com seus pais. Algo devia ter acontecido. Murmurou qualquer coisa incompreensível, um murmúrio agoniado e primitivo de dor.

“Vou pegar remédio para você”, disse. Não sabia por onde começar. No armário do banheiro todos pareciam pouco demais. Todos os rótulos eram vermelhos, laranja, coral, as letras eram embaçadas e se misturavam num borrão fosco de sangue e angústia. Pegou todos os remédios e os jogou no chão próximo ao menino, que formava um rastro vermelho do balanço demente.

Não sabia o que fazer, não sabia. “Passa pra mim”, ele roncou, escarrando um borrifo vermelho e aguado no chão. Agachou-se próximo ao menino e pegou os remédios, um por um, para aplicá-los à pele dele, outrora alva e imaculada.

Ele ficou nu com suspiros coagulados de uma dor pesada, e ele aplicou todos os líquidos estranhos às feridas latejantes do garoto. Ele chorava e berrava tanto que parecia que fez sua garganta sangrar, tamanha era dor. Passou os remédios e o menino simplesmente jazeu no chão, um corpo ofegante de olhos vítreos e sem vida, de imobilidade ocasionalmente interrompida por um espasmo insano.

Teve vontade de lambê-lo, de saborear as feridas, de sentir em suas papilas o gosto ferroso do sangue, do sangue do sangue do sangue, queria limpá-lo, queria lavá-lo, queria possuí-lo. Era algo de sangüíneo. Sentia-se um monstro suando um fetiche cruento e nojento. Mas era tudo muito duvidoso, e muito vermelho muito sangüíneo muito machucado.

Observava-o desmaiado sobre o chão frio que maltratava as feridas vivas do garoto; deixou-se levar pelo raciocínio e tomou um banho, tomou um uísque. Acalmou-se. Nesse pesadelo de sangue e anti-séptico, era vermelho e era o sangue.

sábado, 8 de novembro de 2008

[Desafio] O belíssimo dia em que o sol se levantou e a manhã não nasceu

1. Luz

Na luz há fótons.
Os fótons são partículas elementares.
Eles trazem consigo a energia luminosa
E a energia eletromagnética
De todos os cumprimentos de onda.

2. Quarks

Quarks são pequenos e úteis.
Compõem os hádrons, dentre os quais estão prótons e nêutrons.
Down, up, charm, strange, top, bottom
São seus tipos.

3. Sol

O Sol é uma estrela.
Estrelas são enormes e
Massivas bolas de plasma.

4. Manhã

Manhã é a parte do dia em que
Nasce o Sol, ao leste.

5. Dia

Período de uma rotação da Terra em torno de seu eixo.

6. O dia do título

Foi quando Dona Helena, a primeira a acordar na aldeia, levantou-se do colchão macio e vazou para fora das cobertas quentes e viu que não havia luz. "Onde 'tão aqueles fótons da peste?", pensou com seus botões.

Foi aquele dia em que ela coçou o buço e logo viu que havia algo fora do lugar. "Opa," sussurrou para si própria, "onde será que 'tá aquela bolota de plasma dos diabo?" Foi até a janela, absoluta, anti-quântica, e tava "tudo um breu danado, meu bom Jesus amado!"

Nesse dia, seus ups e downs continuavam ups e downs, mas seu spin era strange. "Virge Maria, vai ver que o eixo emperrou?" Foi ver se havia óleo para eixos de rotação. Estava em falta, mas quem sabe o Seu Valdir tinha.

"Seu Valdir, acorda Seu Valdir", berrava Dona Helena. Acordou Dona Hermengarda, Dona Lisandra, Seu Jasão, Seu Jonas e a Laila. "Mas qu'é isso, Dona Helena, co'esses barulho a essa hora da manhã, a senhora bebeu, foi?"

"Que bebi que o que, Seu Valdir!", ela retrucou de volta. "Olha o céu, peste!"

"Eita ferro"

"Pois não é que 'tá tudo escuro, home!" Dona Hermengarda esganiçou. "Minha Santa Genoveva, será que deu problema na fusão de hélio?" Acordou o Seu Hélio. "Que barulheira é essa aqui nessa budega?"

"É que o Sol 'tá mangando de nós, Seu Hélio", Dona Helena explicou, arrazoada. "Escuta, Seu Valdir, heim, Seu Valdir, heim! O senhor não ia ter um óleo de eixo planetário aí não, né?" Fez um charme.

"Não é que sobrou da última vez?"


7. Saga

Eles viajaram até o templo de Atlas, onde bateram um papinho com o Beto. "Será que você podia ver a chave pra nós passar um oleozinho no eixo e o dia nascer?" Perguntou Dona Lisandra. "Ih, vai ser difícil, mulher", ele respondeu. "Tem que ir lá no departamento do Gal", ele disse, "mas eu acho que ele 'tá viajando, é".

"Tu não 'tá de broma co'a gente não, é?" Seu Jasão desafiou. "Que eu de broma ora veja lá minha cara de broma". Se meteram numa discussão, Seu Jonas os separou e disse: "Pára de brigar que a gente tem que ver de achar o protocolo com Seu Bór"

Foram até o escritório do Bór, mas ele estava almoçando. Quando, finalmente, ele chegou, todos fizeram grande festa. Ele lhes deu o protocolo, e a Laila, a mais jovenzinha, foi quem escreveu tudo com a letra redonda dela. "E agora?" Quis saber Dona Helena.

"Agora eu envio o protocola, oras. Sangue de Jesus tem poder, quanto papel, minha Nossa Senhora de Lourdes!"

8. Conclusão

Deu no que deu, conseguiram passar óleo no eixo do mundo, mas tão tarde que já era meio-dia.

E eu digo pro meu povo:
Essa história assim e assado,
Quem quiser ouvir de novo,
Vai ter que pagar dobrado!





Proposta:
"Os 11 motivos do jacaré"

Emenda

Victor e eu alteramos as regras do jogo-desafio corrente (por meio deste, Cássia, esteja devidamente precatada):

No lugar de, ao final de cada novo texto pertinente ao desafio, escrever-se uma nova proposta, é tido que seja lançada UMA nova proposta APENAS quando se houverem escrito DOIS textos, um relativo a cada desafio.

Exemplifico: já escrevi "O fim de uma era" e vou escrever aquele do sol que nasce mas não nasce, e somente uma proposta será encaminhada, ao final do segundo texto.

Isso porque notamos, eu e Victor, que, se a cada nova proposta surgissem dois textos, cada um com uma proposta diferente, a quantidade de textos aumentaria em progressão geométrica (se, obviamente, todos respondessem todas as propostas- o que não é compulsório, mas uma prerrogativa justa). No novo formato, a quantidade de textos a serem escritos manter-se-á a mesma, colaborando com os amiguinhos.


Mm. Isso aí.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

[Desafio] O fim de uma era

No tempo que a grama crescia, verde, ostentosa, grama, centímetro a centímetro, viu o mundo. Coisas aconteceram, pois não antes, com as mudanças se muito encantava ela, assim, verde, grama, discreta, silenciosa. Lá quando a família da piscina veio estava, pés de criança; da borracha, o cheiro, o látex. D'escola foi que não ouviu a festa que o adolescente fez, mas isso sim, banho de cerveja levou.

Tomou graça das loucas do casal do cachorro; tomou ojeriza do cocô fedido, fedido. Tão enfim não mais, era grama, verde, loura, coisa, grama. Que ainda não tudo, coisas maiores viu! Viu mudanças, viu mudanças. O novo presidente, há lá levado consigo. Revolucionou ele, fez ainda mexida, sutil tanto quanto!

Sussussuou e fralaralou dos ventos, aquilo, que ventos! Levou mais banho foi, na água. Presenciou e sofreu com a limpeza; uma lufa-lufa baratébria; bradaria. Só que é paciente. Ter final é grama, verde, grama, velha. Esqueceu a outra parte, nina, e agora só lhe restou correr o resto do tempo em trepa.

Mas um dia acabou a piscina e os pés e o látex e a cerveja e o casal e o cocô e o presidente e os ventos e a grama, a que o homem veio aparar e levantou percevejo. Acabou a grama, verde, garapa, dilacerada, grama, morta.

O fim de uma era. O fim da era da grama. Aliás, outras gramas, mais verdes, estão por vir. Mais verdes, mais grama, mais centímetros. Se lhes baste que a espera!



Proposta:
(veja elucidação no post seguinte -- a proposta deste texto será a mesma que a do próximo)

domingo, 2 de novembro de 2008

[Desafio] O motorista e a omelete

Mesmo que não fosse dos grandes chefs de cozinha franceses, ele arriscou fazer sua primeira refeição por conta própria, afinal ou assim era ou morreria de fome.
Era seu primeiro dia sozinho em casa e até então tudo havia corrido bem, o que era bem lógico, pois acordara havia uns trinta e sete minutos. Como não morresse, tudo havia corrido bem. Ótimo.
O recado na geladeira era tentador: "Querido filho, mamãe foi ao médico e volta tarde. Tem arroz na geladeira. Asse uns nuggets para você. Te amo!", mas ele buscava mais.
O arroz, tudo bem, estava pronto. Mas como acompanhamento...
Recusava-se a preparar aqueles frios empanados no forno elétrico, apesar de já ter feito isso uma boa dezena de vezes.
Hoje era um dia especial. O dia da sua libertação, quando das suas mãos sairia o alimento necessário à sua vida. Épico!
Metódico como um cientista, o menino de 13 anos colocou sobre a bancada tudo o que precisava para sua aventura culinária: ovos, presunto, colher de pau, queijo, prato, manteiga, sal, frigideira e coragem.
Acender o fogão era simples: já havia visto a mãe fazê-lo várias vezes.
Findo o desafio de controlar o fogo (já se sentia tão superior aos homens das cavernas, o menino!), copiou com cuidado a memória dos gestos da mãe.
Nada havia de complicado. Precisou apenas pôr a manteiga na frigideira, colocar a frigideira no fogo, bater os ovos no prato (ai, que dor!), derramar com leveza os ovos batidos na frigideira, despejar um pouco de sal sobre os ovos batidos, esperar o ponto, virar a omelete e voilà! Estava pronto seu divino acompanhamento.
O resultado, para o pequeno, fora tão delicioso que, apesar da pouca experiência em cozinha, já não se considerava um reles "piloto de fogão".
Era um motorista!


Proposta:

O fim de uma era

[Desafio] O motorista e a omelete

- Amor...amor...eu ‘tô com um desejo..

-

Odair trabalhava naquela casa havia alguns anos. Recentemente, com a gravidez da patroa cada vez mais perto do fim, recebia extra pra ficar de prontidão todas as noites, em caso de alguma emergência. Como a gestação vinha sendo tranqüila e nada tinha acontecido, o motorista geralmente passava as horas dormindo no quartinho ao lado da garagem. Assim, foram precisas três ligações para o rádio para que Odair quebrasse sua rotina e acordasse, dizendo um oi rápido e sobressaltado.
- Odair...temos problemas.
- Aconteceu alguma coisa com a Dona Martha, patrão?
- Não exatamente, ela...ela..quer um omelete
- Ahn...desculpa a indelicadeza, Seu Roger, mas o senhor não acha que pra isso era melhor ir pra cozinha?
- Então, esse é o problema... Não tem ovo em casa- Odair ficou em silêncio, percebendo o que viria a seguir- Você se importaria de ir ao mercado?

-

Ir ao mercado seria uma coisa simples e fácil, não fossem alguns detalhes.
Naquela parte da cidade nada era perto a ponto de se poder ir a pé. Como se isso não fosse o suficiente, os ricos da região, como Seu Roger e Dona Martha, gostavam de ter suas mansões em lugares ainda mais longes e isolados. Em conseqüência, as compras da casa eram normalmente feitas por telefone, ou tinham um dia inteiro reservado para fazê-las.
Comprar um ovo naquelas situações era uma tarefa quase hercúlea. Olhando para o relógio, Odair viu que eram 3 horas da manhã. De um domingo. Suspirou e ajustou sua armadura - uniforme completo com gravata, luva, sapatos lustrosos e quepe - e partiu rumo ao seu primeiro trabalho.

-

Quando Odair encontrou um mercado 24 horas se sentiu muito sortudo. Tão sortudo que nem ligou para os olhares estranhos que recebeu dos funcionários, alguns deles quase dormindo recostados nas prateleiras. Terminou de depositar os ovos sobre o caixa e algo lhe ocorreu. Encostou o quepe no peito, pediu à caixa que esperasse e pegou o rádio.
- E então, Odair, 'tá chegando?
- Na verdade, não, 'tô no mercado ainda...mas é que..a patroa quer omelete de que?
- Como assim, Odair?
- Tem tudo que precisa na casa? Sabe como é né, senhor, omelete não se faz só de ovo...

-

Dirigiu muito mais rápido do que o recomendável - o pedido havia sido feito já há um tempo e ninguém queria uma criança nascendo com cara de ovo- e saiu do carro já passando um rádio para o chefe.
- 'Tô chegando co'os ovos, patrão!!- silêncio e suspiro pesado do outro lado e Odair parando no meio das escadas
- Que foi, Seu Roger? Dona Martha perdeu o desejo?
- Não, não, antes fosse. É a Rosa, Odair. Eu esqueci que a Rosa tá na casa dela hoje.
- ...e qual o problema nisso?
- eu não sei cozinhar.

-

Odair então se viu tirando o casaco e levantando as mangas, ligando o gás e arrumando as coisas na bancada. Olhou para tudo alguns minutos, viu a graça da situação e começou o segundo trabalho.
Quebrou três ovos num prato e misturou bem a clara e a gema com um garfo (movimentos circulares, movimentos circulares, movimentos circulares). Colocou a frigideira na primeira boca do fogão, adicionou um pouquinho do óleo e depositou metade do conteúdo do prato e, em seguida, os complementos. Arrumou pra que ficasse o mais redondinho possível, esperou um pouco e virou. Esperou mais um pouco e tirou da panela, botando num prato limpo. Colocou mais óleo e a segunda metade do conteúdo do primeiro prato e fez tudo de novo.
Sorriu para sua obra prima.

-

Nem cinco minutos de fogo aceso depois, Seu Roger abriu a porta do quarto e se deparou com um Odair impecavelmente uniformizado carregando uma bandeja de prata com dois omeletes, um copo de suco de uva e alguns dos docinhos do pote da cozinha. Sorriu para o motorista, que também mostrava os dentes, e pegou a bandeja de sua mão, murmurando um obrigada e anunciando a esposa que seu 'desejo' havia chegado.

-

Odair estava cansado e já com a gravata frouxa quando recebeu o que esperava ser o último rádio da noite lhe comunicando que fazia 'o melhor omelete do mundo', nas palavras de uma grávida faminta.
Olhou para a pia ainda desarrumada e sua barriga roncou.

Hora de fazer outra omelete.

-


Proposta:
O belíssimo dia em que o sol se levantou e a manhã não nasceu

sábado, 1 de novembro de 2008

Não escreveu o título

Escreveu uma página em branco e acordou no dia seguinte. Não viu as roupas suadas largadas pelo chão do quarto, não tropeçou em nenhuma delas. Tomou banho, tomou café. Saiu de casa, entrou na van. Coisas da classe média. Esperou que ele chegasse, quis que se sentasse ao seu lado, onde sempre se sentava.


Seus olhos não se encontraram. Suas mãos não tatearam o medo e o suor e os sonhos. Ele não falou que queria tê-lo, que queria amá-lo, que lhe queria, lhe queria demais. Ele não segurou em sua mão, não a acariciou com a sutileza da beleza da inércia juvenil, e ele não gostou de ter sua mão tão ternamente tocada.

Não se olharam de novo. Ele não lhe deu a página em branco que escrevera, ele não a leu e não fez silêncio, um silêncio plano e estático. Ele não fez uma cócega nos seus lábios com a pontinha dos dedos e não disse que queria beijá-lo. Ele não o beijou. Eles não se beijaram. Eles não se abraçaram.

Chegaram ao destino final. É aqui, é o último dia em que se veriam. Não deram uma última olhada, não deram um último beijo, ornado com um último suspiro de saudade antecipada. Levantaram-se e não se despediram. Nunca mais se viram.

E ele nunca mais viveu.






Título para o próximo texto: "O motorista e a omelete"

Primeiro grande desafio

Num momento de inspiração, passou-me pela cabeça propor um pequeno desafio aos bravos blogueiros que resistiram e continuaram escrevendo aqui. Nada muito elaborado ou complicado.

Funcionará da seguinte forma, com as seguintes regras:
O blogueiro deverá sugerir um título para que o próximo postante possa desenvolver um texto (seja ele uma dissertação, um conto, uma crônica ou um poema) em cima da proposição.

1) A proposta só poderá ser feita após um texto pertencente ao desafio, salvo o primeiro.

2) A postagem do texto será feita com a seguinte formatação:
[Desafio] Título sugerido

Texto.

3) Outros textos, fora do desafio, poderão ser postados.

4) Limite de DOIS textos por título, seja ele da mesma pessoa ou de pessoas diferentes.

5) Aquele que postou a sugestão NÃO poderá se utilizar desta para participar do desafio.
Talvez depois.

Boa verborréia, meus queridos :)

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

No escuro

A primeira que coisa que se faz necessário dizer é que, aqui onde estou, onde quer que eu esteja, não há luz. Conseqüência: deve haver milhões de coisas a serem enxergadas, mas isso, no momento, é impossível. Apesar de não poder ver, não tenho vontade de andar por aí. Posso tanto estar num escritório vazio quanto numa sala de tortura, portanto não arrisco dar um só passo. Melhor continuar sentado no chão, que não me parece áspero o suficiente para machucar, mas também não é confortável.
A idéia de ficar no chão nunca é confortável, diga-se de passagem.
É como se eu estivesse menor do que o mundo, menor do que tudo, menor do que eu mesmo.
(O ser humano é mesmo uma máquina perfeita. Os meus olhos já se acostumam com o escuro e eu agradeço por senti-los ainda no mesmo lugar.).
Ainda com um certo receio, tateio meu próprio corpo – a única coisa que, se tateada, não me trará surpresas desagradáveis – e descubro que ainda o tenho íntegro. Isso é bom.
É bom não estar amarrado a nada, mas descobrir-se livre é melhor ainda.
-Olá? –arrisco eu, na esperança de ser ouvido, mas só consigo perceber uma voz a responder-me, um eco: “Olá”.
Pela lógica, eu que sempre fui bom em usá-la a meu favor, descubro que estou num lugar relativamente pequeno. Pequeno o bastante para que eu me ouça: tanto em eco quanto em pensamento.
Entretanto, a lógica falha quando ouço a mesma voz, uma segunda vez, perguntar-me:
-Confortável?
(Nos arquivos da minha memória, havia um pequeno catálogo sobre o que eu entendia por “eco”.
Eco é uma reflexão de som, portanto, repetem exatamente o som que fora emitido e, sobretudo, apenas respondem. Os ecos, até onde sei, são incapazes de perguntar coisas. Não são do tipo que toma iniciativa.
Frente a essa constatação, fiz o que qualquer alma boa faria numa situação de perigo.)
Gelei.
Apesar de um pouco amedrontado, consigo manter o bom humor de sempre:
-Não.
-Que pena, Mário.
-Quem é você?
-Você sabe.
-Não brinque.
-Eu posso ser um assassino sanguinário coberto de sangue, posso ser uma mosca, um monstro, um mago, um médico, um matemático, uma mulher, um marciano, um mártir, um matador...Você ainda quer saber?
-Quem é você?
-Acenda a luz. Há uma corda acima da sua cabeça. Se não confia em mim, pode balançá-la e ouvir o barulho da lâmpada no metal. Mas esteja preparado para qualquer surpresa.
-Você venceu.
Eu, portanto, encontro-me dividido entre continuar o diálogo com esse ser incógnito ou enfrentar o medo de encarar o que eu, frente ao tom que o desconhecido apresentava, encarar de frente o que eu não gostaria.
-O que você quer?
-Ora, quantas perguntas! Conversar não basta?
-Não vê que essa não é a melhor hora de fazer isso? Melhor me tirar daqui. Quero voltar para casa!
-Por que não? Estamos sempre em casa, Mário.
-Não quero conversar.
-Respeito sua escolha. Mas te peço: não tema. Eu não vou te fazer mal. Seria loucura, suicídio, burrice.
Quem quer que estivesse falando, calou-se.
O silvo agudo do silêncio é mais desconfortável ainda quando não se sabe onde está, junto a alguém que não se sabe quem é.
É tão grande o desconforto que encho-me de coragem, estico a mão direita para cima e, enfim, puxo a corda que, segundo meu cárcere, iluminaria tudo.
Ele não mentira: uma luz amarela acende-se e posso enfim enxergar onde estou: uma versão modificada da minha própria sala de estar. A mesma, se lhe faltassem mobílias. Entretanto as janelas e portas estão fechadas e, pelo vidro, não vejo nada além de um breu denso.
Os olhos, machucados pela luz repentina, começam a recuperar-se e, enfim, acostumam-se ao novo ambiente. Talvez seja difícil para eles aceitar que ali, onde agora há luz, seja o mesmo lugar de antes.
Não vejo, contudo, o que realmente me levara a acender a tal lâmpada. Suponho que ele esteja atrás de mim, mas a coragem, que antes tive, se esconde e prefiro manter o cárcere apenas idealizado. Fizemos uma troca secreta: ele me mantém preso na sala, no mundo real e eu o mantenho preso fora da minha mente.
-Tem medo de encarar a verdade?
-Há certas coisas que são melhores incógnitas.
-Sei bem como você se sente.
-Não sabe.
-Mais do que você imagina.
-O que você quer de mim?
-Eu já disse: apenas conversar.
-Conversar sobre o quê?
-Não sei, puxe um assunto.
-Quero sair daqui.
-Você é muito monótono, Mário.
-Como você sabe meu nome?
-É óbvio.
-Porque?
-Você é muito cheio de perguntas, mas eu sei como você se sente.
Ele conseguira mudar meus sentimentos. O que antes era medo passou a ser irritação.
Então, me viro e vejo que ele não era nada que eu não houvesse visto antes. Não era perigoso, mas me causa um desconforto imenso.
Era eu.

domingo, 26 de outubro de 2008

Saída do Blog

Como pessoa que acredita na comunicação e esclarecimento público, venho aqui deixar registrado minha saída do Blog e seu respectivo motivo.
Simples: não participo à meses, nem postando, nem comentando e, por fim, nem tendo o interesse para tal. Apaguei todas minhas postagens anteriores e meus recados. Esta é minha última postagem no Blog e fica à cargo de vocês deixá-la aberta ou não ao resto do público. Na minha opinião, seria esclarecedor.
Desejo boa sorte à todos que continuam escrevendo no blog, Vicor, Pedro, Jéssyca e Cássia.
Um abraço à todos,
Daniel

Título é coisa de comunista

Tomado pelo "furor democrático", como descrevi meu entusiasmo eleitoral mais cedo a minha mãe, passei um domingo esperançoso em meio a uma atmosfera carregada de indefinição. Ainda sou menino (e não me contradigam!) e entendo tudo isso como inocência -- muito embora nós, jovens, muitos pela primeira vez fazendo parte desse maravilhoso processo eleitoral, minto, circo estapafúrdio, deixemos nossa naïvité natural fora de cogitação ao refletir sobre nossas emoções.

Reflexões acessórias à parte, narro. Minha mãe, mulher nos seus quarenta, desencantada com o Brasil, nascida no caldeirão político que era o Brasil às vésperas da ditadura (veio ao mundo em 1963), todo domingo -- único dia da semana que passa em casa -- escuta um programa de rádio espírita em uma rádio AM, pontualmente às seis da tarde. Hoje não foi exceção, como haver-se-ia de esperar de um culto espírita.

Desde às cinco e pouquinho montávamos um quebra-cabeças de mapa múndi, que acompanhou os fascículos dos Atlas National Geographic, com que ela tão afavelmente vem me presenteando e, às seis, desliguei a televisão, a seu pedido, e levei à sala seu guerreiro rádio de pilha branco encardido. Despedi-me da Globo News e mergulhei nos oceanos Pacífico Sul, Atlântico Sul e Índico, enquanto ansiosamente projetava em meus pensamentos sobre o que poderia estar, concretamente, ocorrendo no mundo das eleições.

Várias vezes minha mãe tentou, em vão, me acalmar. Afinal de contas, levei todo esse processo eleitoral (leiam, se possível, aliás, a crônica que João Ubaldo Ribeiro no jornal O Globo) muito a sério, muito pessoalmente. Ouvi-a dizer que essa era a primeira vez em que escolhia um cadidato não por conveniência, como contingência, para impedir que outro, ainda mais insofrível, tomasse posse. Que era a primeira eleição em que se sentira votando em um candidato, e não contra outro. Et cetera.

Era injusto, pois, da minha parte, indignar-me. A primeira vez em que fui recebido com apatia por mesárias degostosas (de forma alguma as culpo -- e mais, temo o mau-humor que exibiria caso fosse recrutado para função tão ingrata) em um domingo desconfortavelmente quente foi para votar em um candidato em cujo potencial de mudança acreditava. Não que visse meu candidato como o libertador messiânico como muitos vêem seus escolhidos, deixemo-lo claro.

Concluímos o quebra-cabeças, pelejamos para encontrar a forma mais adequada, mais anti-empregada desastrada de guardá-lo (pensamos em emoldurá-lo, tão lindo que ficou). Liguei a televisão. Tão logo veio o choque: vi Lúcia Hippolito -- não, não ouvi, vi -- comentando a vitória parcial do candidato GI Joe, nosso tão amado político boneco, feito de um plástico indestrutível. Ainda dominado pelo "furor democrático", desabei em impropérios para gente que não podia me ouvir e que desconhecia minha existência. Desmoronei no desamparo que vejo habitar os semblantes dos mais experientes. Implodi em raiva.

A frase "meu candidato não foi eleito" não é simplesmente alvitre da insatisfação -- claro, se GI Joe tivesse perdido, seus militantes também o lamentariam --, mas o apelido de uma construção metafísica que gosto de chamar de Mausoléu do Pensamento. Sim, amigos, o pensamento morreu. Tudo aquilo que minha mãe, já conformada com a mediocridade, sempre me disse sobre a mentalidade das pessoas, sobre como elas pensam a política (optei pela transitividade direta, se não se importarem), acabou por se revelar, para mim, agora, o alicerce do dito mausoléu.

Acordarei, amanhã, sentindo na pele o ar quente do Rio de Janeiro que olhou a mudança nos olhos e fez-lhe do peito peneira. O Rio, amanhã, será Nathuram Godse, para mim. Mas antes que atirem pedras, retifico: a votação massiva de meu candidato implica, diretamente, uma mobilização. Não foi suficiente. E é precisamente a insuficiência que me açoda a gritar com a inocente televisão.

Sinto conformar-me com a mediocridade. Lembro-me da recontagem na Flórida que deu a vitória a Bush, o Pateta, e não a Al Gore, que dispensa comentários. Lembro-me de acontecimentos lamentáveis. Mas é como assalto. Você ouve falar e se incomoda. Você é assaltado é tomado por um tanatos indescritível.

Eu já fui assaltado. Hoje, em um sentido a mais. E o que levaram não se vende a varejo, como alianças políticas.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

É o que acontece quando põe-se lápis e papel nas mãos de uma pessoa sem sono (ou "O Banco")

Já fazia uns bons anos que ele, o banco, estava naquela praça. Fora cortado e manufaturado a partir de uma árvore sem graça, do meio do cerrado brasileiro, mas sua vida útil, por assim dizer, começara assim que o último parafuso fixara suas bases na praça em que ele estava - como já dito - havia uns bons anos.
Desde quando surgiu, vira de tudo um pouco: casais apaixonados, bêbados, gente sem casa, animais, senhoras. Por ter tanto tempo de existência , dir-se-ia até que já fora mais do que um simples banco. Mesa, cama, ninho de amor, esconderijo, paraninfo, confidente, assento.
Não era vivo, mas existia. Existia não porter consciência de si, mas porque era. Como algo tão terno e tão antigo poderia ser qualificado como inexistente?
Mas não se preocupava em existir, inexistir ou deixar de existir. Continuava sendo. Inventava-se uma nova função sempre que possível. Descobria-se um novo objeto e isso era o suficiente.
O tempo continuava lá, parado, e à medida que as pessoas e as coisas iam por ele passando e morrendo e nascendo, ele continuava na sua eterna multi-funcionalidade.

Um dia, o mundo acabou.

Com ele, o banco, a mesa, o ninho de amor, o esconderijo, o paraninfo, o confidente, o assento, os casais apaixonados, os bêbados, a gente sem casa, os animais, as senhoras.
E tudo isso tornou-se a evolução máxima do que pode ser: matéria.

domingo, 19 de outubro de 2008

Anfiguri para o azul escuro bem escuro

É azul escuro bem escuro,
quase negro,
mas tão somente quase.
Antes, o penúltimo nível.
Tão negro que só se vê um brilho
indefinível,
pobre visível resíduo de luz
que conduz ao refúgio.

Subterfúgio.

Sou um com o azul escuro bem escuro,
no duro.
Puro encantar indiferente,
desafio dos, aos, nos meninos...
Redondos, vítreos.
O sinistro e o direito discutem.

Quantas Macondos há?
Heim?

Galhos curvos
refletem
em
rios turvos.

Enganam-se.
Rebelam-se,
na parcialidade
azul escuro bem escuro,
na eternidade
frouxa,
na passividade
louca.

Rouca
está a voz dos sonhos.

Pouca.

Chacoalhe, adicione uma colherada de
suor, sonhos sadios, sábios sabiás súbitos, salgados
cúbitos. (Quantos, oitocentos?)
Careço súditos...
(Vou vesti-los com cambraia
azul escuro bem escuro.)

Faço um anúncio.
“— Precisos súditos”
Ecoou, enjôo.
Vôo, perdôo. Dá tudo na mesma.
Afinal de contas, tem sempre os malditos corvos,
azul escuro bem escuro,
espreitando por aí nos nascimentos.

Esconderijos não faltam.

O que houve ontem?
Ele ouve um homem?
Comeu couve
antes de o trem passar?

Passa, logo, trem, que o céu vai ficar
azul escuro bem escuro,
cheiinho de sangue e velhice.

Mas não esquenta, guri.
Azul escuro bem escuro
é bonito. Eu gosto.
Meu gosto.
Isso posto,
prato tosco,
(risos) ele não é coxo.
Brado: nem roxo!
Nem roxo!

São eles roxos, os rouxinóis?
Assim como amarelos sãos sóis?
Tu,
pronome pessoal do caso reto da segunda pessoa do singular,
sóis andar nas calçadas
erradas,
menino? Te cuida.

Hoje, não há que nada;
prostíbulo, préstito prostrado, prado preto em pranto,
pronto, um prato pra princesa pregar.
Produtos pragmáticos em pranto.
Tudo em pranto.
Profusão de pranto.
Pranto.
Em pranto.
– Heim, Pranto?
– Nada prático que preste.

Agora deixe descansar.
Em seguida leve ao forno, acento vinte graus, leste;
vire destilado, revire sem beber. Círculo, seta.
É, amigo, desce matando, desce morrendo, desce apodrecendo.
Podre. Círculo, seta. Caneca
sueca.

Choro na choupana de chapéu,
achatado chuí chuá do chagrin descola!

– Jura?
– Juros!
Vai pagar com uma taxa altíssima.
Qual o índice de corre, ação!
Ela leu e disse que o meu futuro era
azul escuro bem escuro.
Juro.

Mas, que é isso?
Azul escuro bem escuro
no fundo bem no fundo
é só uma cor como outra qualquer,
argumentou a mulher.

Cócegas nas narinas nocivas. Nunca nasça,
promete-me? Me promete? Prometo, amorzinho.
Claro que prometo, já disse que prometo,
e a cláusula?
Não tem clausura? Tem cápsula ou casulo?
Tem clavicórdio? Tem crápulas no conclave?
Tem, sim, senhor.
Troca um troço pra eu trazer uns trogloditas traficantes?
Troca, tio, troca.
Toca, trio, toca.

Um mendigo hoje me pediu um pão de queijo,
(verdade verdadeira, hoje, três de outubro,
dê,
dois mil e oito,
eu dei um pão de queijo a um mendigo).

Ouço bem?
Outro bem?
Ou também
outro trem?
Ouro vem!
Ouro sem
outro nem
ostracismo da vida no racismo e no subúrbio.

The suburbs, in Brazil, are for the ignorant, the poor.
The suburbs are ghastly, awful places of doom. I hate them,
I will move near the beach someday, I yearn.

Mas a gente esquecer às vezes como falar o português,
e sorte que eu não. Poeta tem que saber escrever.

Poesia é arte, não é professor,
não é promotor,
não é profissão,
não é procissão,
não é percussão,
não é persuasão,
não é prolação,
não é prótese,
não é mesóclise,
não é aférese,
não é blastômero,
não é pinacoteca,
não é sinalefa.

Se eu faço poesia,
essa, assim, toda jogada,
aluno da mariposa tosca,
(risos) chamei sua mestra de mariposa, riam, pupilos,
riam, caramba!,
até você pode fazer.

Pegue papel e caneta e escreva, escreva sem pensar.
Sem pensar.
Sem penar.
Sem apelar.
Escreve, escriba, que a escrita é escrava da escória!
Na escola,
na escuna,
na escolha,
no estande,
na estante.

Mas, sempre que for fazer poesia,
sempre mesmo,
faça-a
azul escuro bem escuro.

azul escuro bem escuro

Soneto dos Quinze Minutos

O amor é um embuste carcomido,
Que digerido e podre e vão brinquedo,
Não é que creófilo, tolo medo
Da idiotia e do esperar já exaurido.

Eternidade rasa de veneno!
Odioso alvo pranto, é anelo fundo...
Choroso negro júbilo, é imundo...
Crassa bondade do embasbaco pleno...

É mistifório onusto de penumbra,
De que me advertiu sábio histrião:
Hecatombe que a má esperança obumbra!

Amor: inópia do espírito vão,
Sincero badulaque que retumba,
Última prova viva de estar são!

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Morreu, ninguém sabe ao certo quando ou como, largado e bêbedo num meio-fio qualquer.
Saiu de casa em uma quarta-feira para comemorar bebendo o feriado. Quando veio a sexta e ele não voltou, desataram a procurar por bares e conhecidos. Encontraram o corpo já de um dia, esperando ser reconhecido.
Verteram-se algumas lágrimas e começaram a preparar o enterro, limpando o corpo e vestindo-o com roupas de homem de bem. Gravaram palavras dúbias na lápide e flores foram jogadas no caixão, mas o funeral não durou o suficiente para verem a terra acabar de cobrir a sepultura.
Não deixou muito, apenas algumas posses e saudades naqueles poucos que ligavam.

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Bobeirinha trivial

Eis que surge ele, brandindo dois báculos¹
O mago branco, imune à passagem dos séculos
Que, após um tempo, adquiriu hábitos ridículos
E um belo dia, após ajeitar seus óculos
Morreu, pois não havia palavra em -úculos.


¹ Espécie de cajado

domingo, 28 de setembro de 2008

Trechos de uma confissão

Tu és dono de mim, tu me possuis.
Sou teu, integralmente. Teu pertence, teu objeto, tua coisa.
Para sempre serei teu.

Tu és rei de mim, tu me governas.
Sou teu, inabalavelmente. Teu súdito, teu vassalo, tua plebe.
Para sempre serei teu.

Tu és corpo de mim, tu me constituis.
Sou teu, indissociavelmente. Teu pó, teu ar, tua sombra.
Para sempre serei teu.

(...)

Sim, expectorar faz bem. Amor é feito catarro. E enamoro é feito pneumonia.


15 Minutos

Entendo hoje o que é eternidade.

Eternidade não é o para sempre das crianças, nem o até que a morte nos separe.

Eternidade não é toda a experiência que se adquire antes que a vida diga "pare".

Eternidade não é krishna, e não é hare.

Eternidade não é o amor incondicional dos deuses ou o ódio inabalável dos demônios internos das nossas ambições pobres.

Eternidade não é um verso num poema de Vinicius.

Eternidade não é o impossível, o interminável, o indomável, o incomensurável, o inatingível, o intangível, o inacreditável.

Eternidade não é tudo, nem é nada.

Eternidade são quinze minutos.

domingo, 31 de agosto de 2008

Ficção

1. Primeiro Contato, olhar, deslumbre

Foi como uma trovoada inesperada, num dia ensolarado, aquele olhar. Eles eram muito novos, os dois meninos, e não sabiam no que estavam se metendo.

Mas foi uma coisa tão magnética que não dava para não sentir. Dois pares de olhos ligados por um fio invisível de fascinação durante alguns segundos, tão mútuo, simultâneo, impossível de esconder.

Estende a mão. Não, não estende, não por enquanto. Fala alguma coisa, melhor não, melhor ficar de boca fechada. Aquilo ia durar para sempre, aquele momento, por mais momentâneo, aquele momento não ia acabar nunca. Não aquele sentimento, não aquela coisa, aquele quê indescritível do embasbaco. Seria um instante eterno, talhado para sempre na memória, nos olhos, nos corpos.

E, arrastados pelos pais, levados para longe do outro, sentiram a sensação se prolongar, como se ainda estivessem se observando inconseqüentemente, se estudando.

Era um shopping, onde eles estavam fazendo compras de natal. Era um dia quente, tomado pelo marasmo do mormaço, um daqueles dias em que o sofá, o sorvete, o ar condicionado tentam nos dissuadir de sair de casa. Há quem sucumba. Mas como os planos cósmicos nunca dão errado, os pais dos meninos são obstinados.

Enquanto iam por caminhos opostos, agora afastados por um préstito consumista, iam se consumindo de perguntas, de dúvidas, e, sobretudo, de uma sensação maravilhosa, diferente de tudo conhecido.

Uma espécie de gostar, misturado com querer, misturado com uma vontade danada de entender. Um sentimento de completo inacabado. A chave estava na fechadura, mas ainda não tinha sido virada.

Não se encontraram durante o resto do dia, mas essa não era a última vez em que se viriam. O cosmos é mais sábio que isso.




2. Segundo contato, palavras, medo

Apenas em fevereiro do ano seguinte se enxergaram de novo. Enquanto isso, passaram por um período de quaresma emocional difícil de agüentar, uma saudade dos diabos do desconhecido.

Não apagaram das memórias os rostos um do outro, na velha esperança pueril de encontrar a bola de gude no matagal. E todo dia pensaram naquele instante permanente, no dia em que se tornaram imortais um para o outro.

Era, novamente, um típico dia do verão carioca: abafado, insuportável. Estavam os dois na praia, com suas famílias. Quis o cosmos que suas barracas fossem vizinhas, e quis que se vissem. E se viram.

E quando se viram se transportaram para outro lugar, talvez uma outra dimensão, ou qualquer coisa do gênero. Estavam isolados, alheios a tudo em volta. Novamente, veio um silêncio breve e eterno.

“Oi”

“Oi”

Quanto receio, minha sacra misericórdia... Olha o que a gente bota nas cabeças das crianças hoje em dia...

“Eu me lembro de você”

“É, eu também. No shopping”

“É, no shopping”

Deu um passo à frente cada um. Vozes tímidas, pequeninas, numa imensidão de areia e gente e mar. Dava para sentir a tensão, o medo de errar, de falar besteira.

“Eu sou Gabriel”

“Eu sou Henrique”




3. Segundo contato, toque, medo

E apertaram as mãos. Mas não foram só suas mãos a se tocar. Foi muito mais. Ficaram tanto tempo ali, um segurando a mão do outro, sem balançar, que devem ter-lhes chamado a atenção várias vezes.

Quantos anos tinham? Onze?, doze? Já estava na hora.




4. Segundo contato, toque, júbilo

sábado, 30 de agosto de 2008

Ficção

Não há nada melhor que ser egoísta: comer o sorvete todo sozinho e não ter que oferecer para ninguém é bom demais! Por isso fantasiamos sós... Quando neguinho começa a pôr o dedo nas nossas fantasias, nas nossas ficções, nas nossas pseudo-verdades, nas nossas pessoas tão ímpares, rapidamente brota um orgulho que não sabíamos existir. “Tira o dedo dele que ele é meu”. É como sua irmãzinha querendo mudar o cabelo do seu boneco de Lego.

Por isso é tão bom escrever histórias de ficção. É como ter um oceano de Lego só pra você, esperando para ser montado.

Se o meu Lego te revoltar, lembre-se de que é só Lego, e simplesmente não brinque comigo. Vai ver se tem Playmobil, vai.

Luta

Com a mesma desconfiança se encaravam, um no olho do outro, desafiadores, prepotentes. Não falavam a mesma língua, então não falavam, só rondavam, descrevendo um círculo de poeira e antecipação que umedecia o ar e secava as gargantas dos espectadores ansiosos.

A tensão era tão grande que cada passo mais ruidoso, cada respiro mais longo e cada olhar mais firme traziam uma cadeia de interjeições de assombro enquanto os combatentes apertavam com mais decisão as armas, preparavam a boca para pronunciar as palavras, cada um em seu idioma.

Era quase possível ouvir as folhas das árvores, tremendo de medo de fogo e de vento, sussurrando as últimas preces para seus espíritos superiores, que riam da impotência das súditas e da inevitabilidade da batalha iminente, mais próxima com cada milímetro que as sandálias de couro ousavam progredir.

E foi o estalido de uma fogueira na aldeia que desencadeou tudo. Um clique surdo, que soava como os ruídos dos discos pretos que traziam os ciganos em suas máquinas fantásticas.

Em menos de um segundo, ambos tinham as armas em punho: um apontava no alto uma espada fina, tão leve que fazia a platéia se perguntar como a lâmina podia estar tão imóvel, refletindo um fio de luz preguiçoso que ofuscava as pessoas a um certo ângulo; o outro movia duas machadinhas que acompanhavam o ritmo estranhamente calmo de sua respiração.

Agora não mais andavam: estavam parados, esperando o sinal do vento para começar. O que fariam, exatamente, seria surpresa para todos, inclusive eles mesmos. Os mais experientes viam no brilho inconstante dos olhos do espadachim que flertava com um salto a meia altura. Se o adversário percebera ou não tal intenção era incerto, pois fora ensinado a não demonstrar.

O vento soprou mais forte e era esse o sinal. O homem que empunhava a espada fina deu um salto a meia altura, de modo que seus joelhos ficaram à altura do tórax do inimigo, que, habilmente, se esquivou, jogando as costas ao chão, apoiando-se com uma machadinha, erguendo a outra, cortando a brisa cegamente.

Pronunciou meia dúzia de palavras na língua estrangeira e o vento era águia e cravou suas garras longas e inclementes na carne ingênua do espadachim precipitado, que gritou de dor ao sentir a gelidez do ciclone que embrulhava seu corpo impotente como um pacote sem vida, enchia seus pulmões com uma frieza inumana e fazia-o pender pateticamente no ar, para o desgosto da claque de aldeões que acompanhava a luta.

Em pouco tempo, a pele do derrotado tomou uma cor de azul acinzentado fúnebre, e qualquer um que prestasse atenção em seus lábios veria uma derradeira tentativa de fazer saltar do fogo qualquer coisa, mas a essa altura já não era possível mover a boca para formar palavras; o único som a sair foi um último e humilhado grito de dor e raiva, acompanhado de uma nuvem branca que fugia de sua boca.

Ainda apoiado em uma das machadinhas, o vencedor acompanhou a majestade grotesca da cena com os olhos semi-cerrados de um campeão principiante, não acostumado à vitória e às implicações mórbidas do júbilo sem sentido de pessoas sanguinárias, dispostas a parabenizar um estrangeiro se exibisse o espetáculo por que clamavam, mas com o tempo a glória de vencer obumbraria o absurdo da luta em si.

Melado de suor e areia fina, levantou-se para receber os cumprimentos do público no mesmo instante em que um corpo cinza caiu no chão como uma pedra levantando uma névoa indiferente. Poucos pareceram se importar genuinamente com o homem, e apenas duas mulheres lhe deram alguma atenção. Uma delas chorava doentiamente, devia ser a mãe, e a outra tentava consolá-la, mas parecia ter mais apreço pela mulher desesperada que pelo combatente morto.

Dentro de seu vocabulário deficiente do idioma local, conseguiu esboçar diversos obrigados com um sotaque desengonçado. Uma criança empolgada ofereceu-lhe um bicho malacodermo, que se movia nervosamente entre os dedos superiores do menino, que não passava de seis anos. O gesto fez as pessoas repetirem insistentemente uma palavra ao homem, que nada compreendia. Fizeram um gesto, no entanto, inconfundível: apontaram para a boca enquanto mastigavam ar.

Apesar do asco que o animal lhe provocava, sentiu-se impelido a atender aos pedidos, uma vez que vencera uma luta na aldeia deles e precisava demonstrar bravura. Ele tomou na mão uma criatura surpreendentemente quente e esperadamente escorregadia e a colocou na boca com um movimento só. O gosto era bom, mas a textura fazia-o sentir as tripas se revirarem. Engoliu de uma vez o que quer que fosse, e sorriu orgulhoso para as crianças alegres e para os adultos satisfeitos com educação do forasteiro.

Enquanto isso, uma terceira mulher, bem mais velha, se juntou às outras duas. Ela untou o corpo cinzento com uma espécie de malagma, que rapidamente fez sua pele reganhar a cor e a vivacidade. Como um autômato, nascia adulto, e tomava ciência do corpo e do ambiente. A mulher que antes chorava descontroladamente agora dava beijos alegres nas bochechas do homem, prostrado no chão. Assim que recobrou os sentidos, foi atingido por uma dor enorme, e agonizou na areia por um tempo. Levaram-no para dentro de uma cabana, e não se soube dele por dois dias.

Naquela noite, riram com a pantomima profissional dos ciganos por um preço justo, beberam e comeram, enquanto o derrotado agonizava no quarto, solitário, escuro, derrotado. Derrotado.

sábado, 9 de agosto de 2008

sobre táxis

...em dias nublados como aquele observava. Como era esse o fato, via os táxis.
Alguns, dizia pra sí, eram 'mostarda, e não amarelos' enquanto outros pareciam 'não ser cor-de-táxi o suficiente'.
Talvez fosse impresão sua; efeito do dia cinza, que deixa tudo meio sem cor. Não se lembrava de ver isso nos dias de sol, em que tudo é tão claro e brilha tanto... E sua mente vagava e vagava, até que resolveu parar.
Efeito do cinza ou não, continuava lá a espera de um táxi amarelo o suficiente.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Some com a televisão e diz-lhes a verdade sobre nós

Vem, aparece e vem,
Ser papilionáce
o
E edênico. Eleva-me!

Entrega-me o silêncio,

Embriaga-te os sentidos...

Deixa-te ir, deixa-me vir

Cobrir teu corpo de palavras

Úmidas e mornas,

De amores perdidos,

De sonhos umbrais,

De viagens oníricas.

Tu, que habitas os magmas,
Brotas de meus sintagmas,
Trotas nos campos ápiros
De tormentas, de sátiros...

Torna-me teu!
Diz-lhes quem sou...
E porque venho...

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

O caminho sem volta

“Eu estou sentindo uma clareza tão grande que me anula, como uma pessoa atual e comum” (Clarice Lispector)



Até então, havia sido um dia muito normal, sem nada que fugisse à paz e à tranqüilidade de sua vida. Conforme o planejado, tudo havia saído dos planos: ele tinha um luxurioso prazer em planejar muito bem o dia para simplesmente fugir ao roteiro pensado. Era um fora-da-lei de si mesmo, por assim dizer.
Sendo assim, ao invés de ir ao banco pegar o dinheiro de que precisava, permitiu-se uma rápida visita à biblioteca pública local, apenas para efeito de curiosidade. Ele nunca lá havia estado e sempre planejava lá ir, o que, logicamente, nunca era cumprido, deixando-se sempre para mais tarde o passeio cultural pensado.
O ambiente era do mais puro silêncio, apesar da grande quantidade de pessoas que ali estavam – digo grande quantidade porque, atualmente, qualquer número acima de quinze pessoas dentro de uma biblioteca é bastante. Ele deu voltas e voltas pelas prateleiras, pegou livros, julgou-os todos pela capa, devolveu-os às estantes. Estava lá pura e simplesmente para nada fazer, já que a idéia do dia era fazer muitas coisas.
Até que um pequeno livreto o surpreendeu, localizado entre antologias poéticas de Schopenhauer e Augusto dos Anjos.
E é bastante notável que o livro o tenha chamado a atenção, porque não havia qualquer atrativo em sua capa: um simples tomo azul-marinho com os dizeres impressos em letras miúdas ao canto inferior direito: “O caminho”.
E, mais notável ainda foi o fato de Lúcio ter se decidido a sentar numa mesa qualquer e folhear o livro, já que dispunha de tempo livre – no qual, segundo seu roteiro do dia, estaria sendo ocupado por uma aula de yoga e dois tempos da faculdade, nessa ordem.
Sentou-se e pôs-se a ler o livro com um certo esmero. Abriu-o pela primeira página à procura do autor, mas não encontrou nem notícia deste.
Enveredou-se pela segunda, terceira, quarta, quinta página...Nada de autor ou qualquer informação sobre a publicação.
Até que chegou à sexta página e, neste momento, foi tomado de súbita vontade de ler, de modo que nem lhe passava mais pela mente a idéia de largar o livro.
Eis o conteúdo: a verdade.
Naquele momento, exato momento do término do livreto, Lúcio havia se deparado com o caminho, a clareza, a razão de ser.
É claro que, num primeiro momento, ele se sentiu deveras assustado com a grandiosidade do que vinha a ser a lucidez.
Entretanto, seu susto não passou num segundo momento e muito menos num terceiro: a verdade havia lhe causado um grande choque.
Pois, se isso era, de fato, o Fato, o que fazer com ele? O que fazer, agora que sabia do que sempre fora escondido a todas as outras existências? Contar-lhes a verdade, de início, pareceu-lhe uma boa saída, mas isso seria muito difícil, posto que ninguém o levaria a sério – quem ouviria alguém que simplesmente não consegue se encaixar num dia-a-dia sadio?
Atordoado, saiu pelas ruas em busca de perguntas, porque as respostas contidas no volume de “O caminho” já lhe enchiam a cabeça o suficiente.
Esquecer o que fora lido também não era solução, afinal, o conhecimento mostrava-se como sendo um caminho sem volta. Por mais que se esforçasse, a verdade, que tão facilmente fora absorvida, simplesmente não lhe deixava as sinapses nervosas e tomava de assalto todo e qualquer outro pensamento: ele já não conseguia pensar em outra coisa que não o Fato.
Agora, não se tratava mais de um simples problema de separação do joio e do trigo. Ele precisava separar o álcool da água, o açúcar do leite, o amor do ódio.
Pensamento e verdade haviam se fundido de tal maneira que era inútil sua vontade de esquecer: porque quanto mais se esquecia, mais lembrava.
Por outro lado, se abandonar seu problema não era possível, impossível também era a convivência com essa clareza, que de nada lhe servia, mas que lhe assombrava de tal maneira com a qual era impossível de lidar.
Lúcio, então, foi tomado de uma certa inveja dos transeuntes que passavam a seu lado, alheios da verdade e, portanto, do seu grande problema. Eles simplesmente ignoravam-na e, assim, viviam felizes no seu torpor diário, nos caminhos retilíneos das suas rotinas.
Até que, por um breve e abençoado instante, ele foi quase atropelado por uma jovem de aspecto austero, que pedalava uma bicicleta com admirável leveza e tranqüilidade. Após uma gama de xingamentos, ambos seguiram seus caminhos, como se nunca tivessem se encontrado antes.
Foi quando lhe veio pergunta crucial (afinal, como já foi dito, de respostas, Lúcio já estava pleno): seria morrer a solução? Se seu assombro de vida se encontrava no pensamento, na luz, não haveria solução mais racional que parar os pensamentos. E que maneira seria mais elegante e eficiente que a morte? Apesar de dolorosa, a suposta dor da morte não seria pior que a dificuldade em se viver com a verdade e com a inveja ácida dos que simplesmente conseguiam viver normalmente por ignorá-la.
Lúcio até teria se matado, se houvesse se decidido por alguma forma de morte antes de passar em frente a uma birosca suja e mal iluminada, cujas únicas fontes de luz eram uma lâmpada fraca e uma televisão, na qual era exibido um jogo de futebol.
Para sua sorte – e para que ele continuasse vivendo – enquanto ele passava pelo bar com a televisão sem notá-lo, Cecil Théodore, francês, marcava um gol pelo time local, sendo um causador de gritos vivazes. O que, abençoado seja o fato, lhe fez perceber a televisão e, conseqüentemente, distrair-se com ela.
Ao término do jogo, Lúcio já não se lembrava tão bem do conteúdo do livro que, até agora, havia sido sua sina.
Infelizmente, a felicidade do esquecimento durou pouco para o rapaz, que logo se viu de volta com a verdade na mente.
Porém, a lucidez suprema lhe veio e, de súbito, ele compreendeu tudo o que era necessário para que o problema fosse resolvido sem que ele se sacrificasse para tanto.
Tomou um ônibus para casa – sorte a dele, morar relativamente perto do local onde já se encontrava – e, ao chegar, atirou-se no sofá como quem necessita de um sopro de vida e ligou a tevê, agora exibindo um novo capítulo da novela das seis.
E sobreviveu assim, nessa sobrevida.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Minha Esperança

Era um salgado prometer raquítico,
Que nesse doce réquiem paraplégico
Se revira na podridão letárgica,
Flébil, frágil e débil, panegírica.

Flores brancas zombam dos para-médicos,
Que em franco desespero categórico,
Agitam nas mãos práticas narcóticos,
Que lá brilham metódicos, robóticos,
Quase mágicos, contos ortobióticos...

Mas no fim, só os vermes...

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Um Réquiem para Bonifácio

Só o prólogo, por enquanto.

Era difícil crer que era verão, por causa do vento gelado, ingrato, que corava as bochechas do menino Max. Seus cambitos de apartamento chacoalhavam pelas ruas de uma cidade serena, limpa e cinza, uma tal de Salzburg, numa tal de Áustria. As pessoas eram loiras, bonitas, de olhos claros. Mas o dia não era bonito, não.

Bonifácio era o homem que Max conhecera havia três anos, no café onde esperava seu pai depois das aulas de violino. Era um homem com lá seus vinte e poucos anos. Magro, mas não raquítico. Tinha cabelos loiros e abundantes. Na primeira vez em que se encontraram, Bonifácio ofereceu ao menino, que tinha nove anos na época, um chocolate quente (era outono). Max, aflito, recusou.

Sempre lhe disseram que não aceitasse ofertas de estranhos. Porém, quando, no dia seguinte, Bonifácio persistiu, com um tom tão doce e insistente, Max acolheu o homem em sua mesa, e foi-lhe companhia durante um lanche silencioso, breve.

Não era normal que homens de vinte anos saíssem por aí oferecendo chocolates a meninos de nove. Mas algo no rosto do homem, a barba por fazer, os óculos calmos, os olhos azuis, algo fez o pequeno Max se esquecer de todas as regras que lhe haviam ensinado sobre aceitar coisas de estranhos.

O dia seguinte foi um sábado, e eles não se encontraram. Na segunda-feira, Max encontrou Bonifácio de novo, e dessa vez até conversaram um pouco, sobre trivialidades, como escola, esportes.

Era um cara engraçado, aquele Bonifácio, fazendo suas gracinhas acabou conquistando o pequeno Max, que, antes de perceber, tinha completado doze anos. Sempre, de segunda a sexta, depois das aulas de violino, encontrava o rapaz e conversava. Sempre, sem que fosse dito, sem que fosse advertido, ele soube que não deveria contar a ninguém, ninguém mesmo, sobre o jovem Bonifácio que encontrava no café.

Depois de três anos, já se conheciam bem. Max, por exemplo, já sabia que Bonifácio era órfão de pai (que morrera num acidente de carro antes de completar um ano), que morava numa área nobre da cidade, que cursava direito na universidade, mas pensava em largar para fazer jornalismo, que nunca tinha tido uma namorada de verdade mesmo.

Foi alguns meses depois de Max ter feito doze anos que Bonifácio morreu. Max não soube como, nem onde, nem quando, mas soube que morreu. Era estranho que um ritual tão cotidiano tivesse se tornado tão importante. Foi então que Max, se sentido bem mal pela morte do amigo mais velho, esqueceu-se do pai, que em pouco tempo viria buscá-lo, e pôs-se a andar nas ruas serenas, limpas e cinzas de Salzburg, no frio verão Austríaco.

E começou a assobiar. Assobiou uma melodia ao acaso, enquanto errava no frio, e, em seu não-pensar confessou o que sentia numa bela música. Pensou em tocá-la no violino, mas sabia que não levava jeito para o violino. Muito embora seu professor o tenha dito a seus pais em algumas ocasiões, eles sempre insistiram. Desde os oito anos!

Max queria parar com as lições de violino. Queria estudar geografia, as coisas dos países e das cidades sempre o fascinaram. Queria aprender esloveno, porque ouviu uma vez um imigrante falando e achou lindo, mas seus pais lhe negaram isso: tinha de ser violino. Para que aprender a tocar os instrumentos, se ouvi-los já tocados era muito mais prazeroso?

E andava, assobiava, andava, assobiava. Um passo, uma nota, um passo, uma nota.

Passou por uma padaria. Deu-se conta de que já várias vezes passara por ela, e sempre sentira aquele mesmo cheirinho de croissant, de pão quente, mas que nunca comera nada dali. Contentou-se com o aroma e seguiu em frente, ou tanto faz a direção.

E assobiava, andava, assobiava, andava. Uma nota, um passo, uma nota, um passo.

E lhe perguntaram que melodia era aquela, tão bonita, tão suave:

Um Réquiem para Bonifácio,

respondeu, satisfeito.