Desafio da Última Linha

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sábado, 30 de agosto de 2008

Luta

Com a mesma desconfiança se encaravam, um no olho do outro, desafiadores, prepotentes. Não falavam a mesma língua, então não falavam, só rondavam, descrevendo um círculo de poeira e antecipação que umedecia o ar e secava as gargantas dos espectadores ansiosos.

A tensão era tão grande que cada passo mais ruidoso, cada respiro mais longo e cada olhar mais firme traziam uma cadeia de interjeições de assombro enquanto os combatentes apertavam com mais decisão as armas, preparavam a boca para pronunciar as palavras, cada um em seu idioma.

Era quase possível ouvir as folhas das árvores, tremendo de medo de fogo e de vento, sussurrando as últimas preces para seus espíritos superiores, que riam da impotência das súditas e da inevitabilidade da batalha iminente, mais próxima com cada milímetro que as sandálias de couro ousavam progredir.

E foi o estalido de uma fogueira na aldeia que desencadeou tudo. Um clique surdo, que soava como os ruídos dos discos pretos que traziam os ciganos em suas máquinas fantásticas.

Em menos de um segundo, ambos tinham as armas em punho: um apontava no alto uma espada fina, tão leve que fazia a platéia se perguntar como a lâmina podia estar tão imóvel, refletindo um fio de luz preguiçoso que ofuscava as pessoas a um certo ângulo; o outro movia duas machadinhas que acompanhavam o ritmo estranhamente calmo de sua respiração.

Agora não mais andavam: estavam parados, esperando o sinal do vento para começar. O que fariam, exatamente, seria surpresa para todos, inclusive eles mesmos. Os mais experientes viam no brilho inconstante dos olhos do espadachim que flertava com um salto a meia altura. Se o adversário percebera ou não tal intenção era incerto, pois fora ensinado a não demonstrar.

O vento soprou mais forte e era esse o sinal. O homem que empunhava a espada fina deu um salto a meia altura, de modo que seus joelhos ficaram à altura do tórax do inimigo, que, habilmente, se esquivou, jogando as costas ao chão, apoiando-se com uma machadinha, erguendo a outra, cortando a brisa cegamente.

Pronunciou meia dúzia de palavras na língua estrangeira e o vento era águia e cravou suas garras longas e inclementes na carne ingênua do espadachim precipitado, que gritou de dor ao sentir a gelidez do ciclone que embrulhava seu corpo impotente como um pacote sem vida, enchia seus pulmões com uma frieza inumana e fazia-o pender pateticamente no ar, para o desgosto da claque de aldeões que acompanhava a luta.

Em pouco tempo, a pele do derrotado tomou uma cor de azul acinzentado fúnebre, e qualquer um que prestasse atenção em seus lábios veria uma derradeira tentativa de fazer saltar do fogo qualquer coisa, mas a essa altura já não era possível mover a boca para formar palavras; o único som a sair foi um último e humilhado grito de dor e raiva, acompanhado de uma nuvem branca que fugia de sua boca.

Ainda apoiado em uma das machadinhas, o vencedor acompanhou a majestade grotesca da cena com os olhos semi-cerrados de um campeão principiante, não acostumado à vitória e às implicações mórbidas do júbilo sem sentido de pessoas sanguinárias, dispostas a parabenizar um estrangeiro se exibisse o espetáculo por que clamavam, mas com o tempo a glória de vencer obumbraria o absurdo da luta em si.

Melado de suor e areia fina, levantou-se para receber os cumprimentos do público no mesmo instante em que um corpo cinza caiu no chão como uma pedra levantando uma névoa indiferente. Poucos pareceram se importar genuinamente com o homem, e apenas duas mulheres lhe deram alguma atenção. Uma delas chorava doentiamente, devia ser a mãe, e a outra tentava consolá-la, mas parecia ter mais apreço pela mulher desesperada que pelo combatente morto.

Dentro de seu vocabulário deficiente do idioma local, conseguiu esboçar diversos obrigados com um sotaque desengonçado. Uma criança empolgada ofereceu-lhe um bicho malacodermo, que se movia nervosamente entre os dedos superiores do menino, que não passava de seis anos. O gesto fez as pessoas repetirem insistentemente uma palavra ao homem, que nada compreendia. Fizeram um gesto, no entanto, inconfundível: apontaram para a boca enquanto mastigavam ar.

Apesar do asco que o animal lhe provocava, sentiu-se impelido a atender aos pedidos, uma vez que vencera uma luta na aldeia deles e precisava demonstrar bravura. Ele tomou na mão uma criatura surpreendentemente quente e esperadamente escorregadia e a colocou na boca com um movimento só. O gosto era bom, mas a textura fazia-o sentir as tripas se revirarem. Engoliu de uma vez o que quer que fosse, e sorriu orgulhoso para as crianças alegres e para os adultos satisfeitos com educação do forasteiro.

Enquanto isso, uma terceira mulher, bem mais velha, se juntou às outras duas. Ela untou o corpo cinzento com uma espécie de malagma, que rapidamente fez sua pele reganhar a cor e a vivacidade. Como um autômato, nascia adulto, e tomava ciência do corpo e do ambiente. A mulher que antes chorava descontroladamente agora dava beijos alegres nas bochechas do homem, prostrado no chão. Assim que recobrou os sentidos, foi atingido por uma dor enorme, e agonizou na areia por um tempo. Levaram-no para dentro de uma cabana, e não se soube dele por dois dias.

Naquela noite, riram com a pantomima profissional dos ciganos por um preço justo, beberam e comeram, enquanto o derrotado agonizava no quarto, solitário, escuro, derrotado. Derrotado.

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