Desafio da Última Linha

Acompanhe aqui as sugestões de cada um:

Desafio dos Neologismos - Encerrado
Desafio dos Títulos -Encerrado


segunda-feira, 4 de agosto de 2008

O caminho sem volta

“Eu estou sentindo uma clareza tão grande que me anula, como uma pessoa atual e comum” (Clarice Lispector)



Até então, havia sido um dia muito normal, sem nada que fugisse à paz e à tranqüilidade de sua vida. Conforme o planejado, tudo havia saído dos planos: ele tinha um luxurioso prazer em planejar muito bem o dia para simplesmente fugir ao roteiro pensado. Era um fora-da-lei de si mesmo, por assim dizer.
Sendo assim, ao invés de ir ao banco pegar o dinheiro de que precisava, permitiu-se uma rápida visita à biblioteca pública local, apenas para efeito de curiosidade. Ele nunca lá havia estado e sempre planejava lá ir, o que, logicamente, nunca era cumprido, deixando-se sempre para mais tarde o passeio cultural pensado.
O ambiente era do mais puro silêncio, apesar da grande quantidade de pessoas que ali estavam – digo grande quantidade porque, atualmente, qualquer número acima de quinze pessoas dentro de uma biblioteca é bastante. Ele deu voltas e voltas pelas prateleiras, pegou livros, julgou-os todos pela capa, devolveu-os às estantes. Estava lá pura e simplesmente para nada fazer, já que a idéia do dia era fazer muitas coisas.
Até que um pequeno livreto o surpreendeu, localizado entre antologias poéticas de Schopenhauer e Augusto dos Anjos.
E é bastante notável que o livro o tenha chamado a atenção, porque não havia qualquer atrativo em sua capa: um simples tomo azul-marinho com os dizeres impressos em letras miúdas ao canto inferior direito: “O caminho”.
E, mais notável ainda foi o fato de Lúcio ter se decidido a sentar numa mesa qualquer e folhear o livro, já que dispunha de tempo livre – no qual, segundo seu roteiro do dia, estaria sendo ocupado por uma aula de yoga e dois tempos da faculdade, nessa ordem.
Sentou-se e pôs-se a ler o livro com um certo esmero. Abriu-o pela primeira página à procura do autor, mas não encontrou nem notícia deste.
Enveredou-se pela segunda, terceira, quarta, quinta página...Nada de autor ou qualquer informação sobre a publicação.
Até que chegou à sexta página e, neste momento, foi tomado de súbita vontade de ler, de modo que nem lhe passava mais pela mente a idéia de largar o livro.
Eis o conteúdo: a verdade.
Naquele momento, exato momento do término do livreto, Lúcio havia se deparado com o caminho, a clareza, a razão de ser.
É claro que, num primeiro momento, ele se sentiu deveras assustado com a grandiosidade do que vinha a ser a lucidez.
Entretanto, seu susto não passou num segundo momento e muito menos num terceiro: a verdade havia lhe causado um grande choque.
Pois, se isso era, de fato, o Fato, o que fazer com ele? O que fazer, agora que sabia do que sempre fora escondido a todas as outras existências? Contar-lhes a verdade, de início, pareceu-lhe uma boa saída, mas isso seria muito difícil, posto que ninguém o levaria a sério – quem ouviria alguém que simplesmente não consegue se encaixar num dia-a-dia sadio?
Atordoado, saiu pelas ruas em busca de perguntas, porque as respostas contidas no volume de “O caminho” já lhe enchiam a cabeça o suficiente.
Esquecer o que fora lido também não era solução, afinal, o conhecimento mostrava-se como sendo um caminho sem volta. Por mais que se esforçasse, a verdade, que tão facilmente fora absorvida, simplesmente não lhe deixava as sinapses nervosas e tomava de assalto todo e qualquer outro pensamento: ele já não conseguia pensar em outra coisa que não o Fato.
Agora, não se tratava mais de um simples problema de separação do joio e do trigo. Ele precisava separar o álcool da água, o açúcar do leite, o amor do ódio.
Pensamento e verdade haviam se fundido de tal maneira que era inútil sua vontade de esquecer: porque quanto mais se esquecia, mais lembrava.
Por outro lado, se abandonar seu problema não era possível, impossível também era a convivência com essa clareza, que de nada lhe servia, mas que lhe assombrava de tal maneira com a qual era impossível de lidar.
Lúcio, então, foi tomado de uma certa inveja dos transeuntes que passavam a seu lado, alheios da verdade e, portanto, do seu grande problema. Eles simplesmente ignoravam-na e, assim, viviam felizes no seu torpor diário, nos caminhos retilíneos das suas rotinas.
Até que, por um breve e abençoado instante, ele foi quase atropelado por uma jovem de aspecto austero, que pedalava uma bicicleta com admirável leveza e tranqüilidade. Após uma gama de xingamentos, ambos seguiram seus caminhos, como se nunca tivessem se encontrado antes.
Foi quando lhe veio pergunta crucial (afinal, como já foi dito, de respostas, Lúcio já estava pleno): seria morrer a solução? Se seu assombro de vida se encontrava no pensamento, na luz, não haveria solução mais racional que parar os pensamentos. E que maneira seria mais elegante e eficiente que a morte? Apesar de dolorosa, a suposta dor da morte não seria pior que a dificuldade em se viver com a verdade e com a inveja ácida dos que simplesmente conseguiam viver normalmente por ignorá-la.
Lúcio até teria se matado, se houvesse se decidido por alguma forma de morte antes de passar em frente a uma birosca suja e mal iluminada, cujas únicas fontes de luz eram uma lâmpada fraca e uma televisão, na qual era exibido um jogo de futebol.
Para sua sorte – e para que ele continuasse vivendo – enquanto ele passava pelo bar com a televisão sem notá-lo, Cecil Théodore, francês, marcava um gol pelo time local, sendo um causador de gritos vivazes. O que, abençoado seja o fato, lhe fez perceber a televisão e, conseqüentemente, distrair-se com ela.
Ao término do jogo, Lúcio já não se lembrava tão bem do conteúdo do livro que, até agora, havia sido sua sina.
Infelizmente, a felicidade do esquecimento durou pouco para o rapaz, que logo se viu de volta com a verdade na mente.
Porém, a lucidez suprema lhe veio e, de súbito, ele compreendeu tudo o que era necessário para que o problema fosse resolvido sem que ele se sacrificasse para tanto.
Tomou um ônibus para casa – sorte a dele, morar relativamente perto do local onde já se encontrava – e, ao chegar, atirou-se no sofá como quem necessita de um sopro de vida e ligou a tevê, agora exibindo um novo capítulo da novela das seis.
E sobreviveu assim, nessa sobrevida.

1 comentários:

Anônimo disse...

hahahahaha!
cara!
muito bom!
realmente, parabéns pelo conto, que faz uma analogia entre alguém culto e alguém ignorante.
Muita gente prefere assistir TV ao ler alguma coisa com conteúdo.

Adorei o texto, é deveras interessante =)

bjos.
=***