Desafio da Última Linha

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Desafio dos Neologismos - Encerrado
Desafio dos Títulos -Encerrado


sábado, 15 de novembro de 2008

Título é coisa de comunista

Este texto não pertence ao desafio de títulos.

Este pequeno conto foi baseado num sonho que tive esta semana. É um tanto mais creófilo, mais violento, mais sanguinolento, mais perverso, mais twisted que meu costume. Que isso lhes sirva de precato. Não tolerarei comentários cujo principal objetivo seja advogar pela moral e pelos bons costumes ou qualquer palhaçada do gênero. Aceitarei, evidentemente, críticas ponderadas e justas de gente inteligente que saiba ler e escrever adequadamente, pois são eles os verdadeiros críticos. (Isso deve limitar o número de comentários, que já não é lá assim tão alto.)

Numa noite cor de sangue, a campainha tocou em sua casa. Ele se levantou do sofá, sacudindo a inércia que se alastrava sobre ele como um tumor maldito nas horas de televisão. Deu passos arrastados na direção da mesma porta de sempre, hoje mais vermelha que o costume.

O corredor era como uma artéria pulsante, vívida, sangüínea, vital. Perante si viu o menino, aquele mesmo de sempre. Sua pele alva estava coberta de chagas, arranhões, hematomas, cortes, pequenos riachos de sangue seco. Sua boca estava particularmente monstruosa, inchada e dormente, dando uma feição de alucinação febril ao seu rosto.

Sua expressão era distante, ao contrário do costume. Falou, uma fala escarlate, sangüínea: “Preciso...”, balbuciou, deixando sair da boca machucada um spray de sangue úmido e quente com uma tossida rouca e um assobio débil da garganta. Não conseguiu terminar a frase, mas estava óbvio que precisava entrar.

Fechou a porta atrás dos dois e viu o garoto sentado no chão em posição fetal, os braços arranhados abraçando as pernas, seus joelhos à mostra. Talvez balançasse para frente e para trás, mas podia muito bem ter sido a pulsação orgânica e rubra da noite.

“Os vizinhos...”, deixou sua garganta dar um assobio desesperado, “não me deixaram ficar lá”. Não sabia o que isso queria dizer, mas era evidente que não podia ficar com seus pais. Algo devia ter acontecido. Murmurou qualquer coisa incompreensível, um murmúrio agoniado e primitivo de dor.

“Vou pegar remédio para você”, disse. Não sabia por onde começar. No armário do banheiro todos pareciam pouco demais. Todos os rótulos eram vermelhos, laranja, coral, as letras eram embaçadas e se misturavam num borrão fosco de sangue e angústia. Pegou todos os remédios e os jogou no chão próximo ao menino, que formava um rastro vermelho do balanço demente.

Não sabia o que fazer, não sabia. “Passa pra mim”, ele roncou, escarrando um borrifo vermelho e aguado no chão. Agachou-se próximo ao menino e pegou os remédios, um por um, para aplicá-los à pele dele, outrora alva e imaculada.

Ele ficou nu com suspiros coagulados de uma dor pesada, e ele aplicou todos os líquidos estranhos às feridas latejantes do garoto. Ele chorava e berrava tanto que parecia que fez sua garganta sangrar, tamanha era dor. Passou os remédios e o menino simplesmente jazeu no chão, um corpo ofegante de olhos vítreos e sem vida, de imobilidade ocasionalmente interrompida por um espasmo insano.

Teve vontade de lambê-lo, de saborear as feridas, de sentir em suas papilas o gosto ferroso do sangue, do sangue do sangue do sangue, queria limpá-lo, queria lavá-lo, queria possuí-lo. Era algo de sangüíneo. Sentia-se um monstro suando um fetiche cruento e nojento. Mas era tudo muito duvidoso, e muito vermelho muito sangüíneo muito machucado.

Observava-o desmaiado sobre o chão frio que maltratava as feridas vivas do garoto; deixou-se levar pelo raciocínio e tomou um banho, tomou um uísque. Acalmou-se. Nesse pesadelo de sangue e anti-séptico, era vermelho e era o sangue.

2 comentários:

Anônimo disse...

Gostei muito! Só acho que ficou meio confuso o "Fechou a porta atrás dos dois". É que a narrativa passa a observar outra pessoa e isso não fica muito claro. Mas você escreve muito bem! Gostei!

Pedro disse...

Este comentário foi removido pelo autor.