Desafio da Última Linha

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Desafio dos Neologismos - Encerrado
Desafio dos Títulos -Encerrado


domingo, 16 de novembro de 2008

Título é coisa de comunista

O seu rosto, outrora pradaria, tornou-se um cânion. Seco, árido, áspero, empoeirado. Reparou isso quando se olhou no espelho pela manhã, uma manhã de domingo, ou de terça-feira, eram todas iguais, e viu um velho. Mas ele não era esse velho. A pessoa que ele via no espelho não era ele.

A luz o enganava, mexia com suas idéias, pensava, pensava, matutava: e quem seria você, a pessoa do espelho. Ele se perguntou se seria realmente ele e confrontou a verdade: envelhecera. Mas não era aquela pessoa, não podia ser, não era. Pára de bobagem, disse aos velhos olhos enevoados e cinzentos, com aquele aspecto cinzento da senectude, aqueles olhos cinzentos que zombam, que dizem que você já está velho e cinzento e deve morrer para deixar de ser um fardo cinzento para o mundo.

Dessa vez decidiu encarar a verdade: era ele, sim era ele e nada podia fazer... Quando ficara assim? Olhava seu próprio rosto, a expressão inevitavelmente vazia e profunda de uma fotografia importante, todas as manhãs, todas as manhãs olhava seu rosto e nunca havia notado as diferenças. Sabia que já fora jovem, lembrava-se desses dias, gloriosos dias de juventude, liberdade, liberdade, de viagens, de amores, de entusiasmo. Como era delicioso o entusiasmo da juventude, aquela ânsia por conquista, por qualquer coisa, aquela ânsia pela complexão, pela integridade, pela totalidade, pela vida intensa e muita, muita vida, por viver muito de uma vez só, pelas garfadas cheias, pelos pratos cheios, pelo sexo, o sexo, o sexo era maravilhoso.

Não era mais jovem, mas isso não significava não ser mais a mesma pessoa de antes, de forma alguma, ser velho não quer dizer ser outra pessoa, ou quer, ou não quer, ou quereria, pensava, pensava, refletia, matutava, cogitava, era. Fazia um mapa do cânion inexplorado de sua face. Hoje em dia, comia pouco, dormia pouco, trepava pouco, celebrava pouco, sua vida era um saco, se soubesse que seria assim quando era jovem teria se matado há muito tempo e isso o perturbava por demais, pois não queria tentar imaginar como pensava que seria quando era jovem, porque há certas sensações que o cérebro é capaz de guardar e outras ele perde, ele perde, ele se esquece delas, assim, num estalar dos dedos ele as deixa para trás, ele não se importa, o cérebro é insensível, é uma máquina, é um computador, ele não pensa, ele não quer, ele não decide, ele faz, ele executa, é um robô, é um autômato, afinal, nós somos autômatos, nós somos todos robôs, somos formigas, formigas idiotas, inúteis, impotentes, impossíveis, os robôs são formigas e as formigas são computadores, e isso o perturbava, pois seu rosto era diferente e tudo era diferente, mas nem tudo deveria ser diferente, ele queria ser como era antigamente, queria envelhecer ao contrário, queria fazer o caminho inverso, mas isso ia contra as leis da biologia e contra as leis da física e contra as leis de tudo e do mundo, mas o mundo não é tudo, nem a matemática é tudo, então ele se esqueceu de o que tudo era e se lembrou do que achava que era quando era mais jovem, e tudo se embaralhou como um baralho sem naipes e só cheio de coringas, cheio de coringas como bobos da corte que dançavam e faziam ruídos impacientes, indolores, inocentes e impávidos com seus guizos mortos, eram mortos, eram de metal, eram robôs, os guizos eram pequenos cérebros, como formigas que tilintam, como taças, eram taças que embriagavam os reis, e quem eram os reis ele não sabia, e de repente havia um reino e súditos e uma rainha e plebeus, muitos plebeus, o mundo é feito de plebeus e de elementos químicos, e os plebeus são a tabela periódica e ele achou que tudo isso não fazia sentido, nem sentido fazia, não fazia sentido, não tinha lógica, nada mais tinha lógica, deixava sua mente fazer divagações loucas, como um parque abandonado arenoso, ou seria uma casa de shows, um sítio de espetáculos, onde havia uma parede tombada cheia de holofotes que não funcionavam e havia uns esqueletos cubóides, é, umas barras de ferro preto que juntas formavam cubos, cubos, eram cubos, como jaulas, mas só tinha as arestas e uns outros eixos, ou talvez não tivesse eixos, sabe, sem eixos, sem eixos, só arestas e vértices e fórmulas e remédios e velhice e morreu.

1 comentários:

Anônimo disse...

Cara, você é bom mesmo! Lendo me lembrei de dois escritores brasileiros: Cecília Meireles e de seu poema "Retrato" ("Eu não tinha este rosto de hoje,/assim tão calmo, assim triste, assim magro"...) e Carlos Drummont, que disse que a gente deveria nascer com 80 anos e ir rejuvenescendo...
Boa semana e parabéns pelo talento!