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segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

[Desafio] Cárcere

Queria aproveitar tudo, muito, sempre. Mas com ela ao meu lado, não aproveitaria nada, nunca. E ela me prendia. Eu era seu. Objeto único de sua loucura, objeto pleno de sua demência. Eu ainda levo nos pulsos as marcas das algemas de ferro; nos pulsos, levo a humilhação do confinamento, da privação e da escuridão. Eu não tomava sol, nunca, minha pele estava pálida -- não, esverdeada. Ainda lembro das moscas que pousavam em mim durante o dia, e eu fazia o que podia para me debater. A sujeira, Deus, a sujeira. E a comida, se aquilo podia ser chamado de comida.
Levo nos meus olhos doloridos, agora mesmo, enquanto essa lâmpada nua me estupra, as cicatrizes da clausura. Levo nos meus ouvidos, os mesmos que agora são invadidos pelo ruído insuportável dos cliques do gravador de fita cassete, os ecos das trancas, chaves e correntes do calabouço que ela chamava de quarto. Lembro da voz doce dela. Eu ouvi tudo o que ela tinha a dizer; cada palavra, cada soluço, cada perdigoto que aterissava no meu rosto e eu não tinha mãos livres para limpar.
Eu aprendi a não pedir. Eu aprendi a ficar calado. Antigamente, eu rosnava, eu grunhia, eu rugia alto, até ficar vermelho, vomitando fúria e tripas. Ela me olhava calmamente e me dava uma porrada. E depois outra. Um dia ela até levou uma faca. Foi bom para sair da rotina. A expressão no rosto dela não mudava; um meio-sorriso, uma sobrancelha erguida, o cenho suavemente franzido; e as unhas. Enquanto ela sentava na velha cadeira e me observava, ela batia as unhas no encosto de braço, o único tique-taque que ouvi, pois lá embaixo não havia relógios. Nem janelas. Eu não sabia o que era noite e o que era dia. Uma vez eu perguntei que horas eram. Prefiro não falar do que ela fez.
Agora mesmo, enquanto minhas costas são violentadas pela almofada da poltrona, eu sinto o ar parado. Aqui fora, o ar se mexe. Lá embaixo não era como aqui fora; eu só sentia vento na hora de levar porrada na cara, ou em outros lugares. Mas o meu favorito era o ferro de queimar. Ela vinha com ele -- e nesses dias o sorriso era quase inteiro -- e me deixava listrado que nem uma zebra. Nas perguntas que você faz, as palavras que você usa são diferentes. Ela não falava assim comigo. Na verdade, ela nem falava tanto comigo, mas era a única voz que eu ouvia, e mesmo sem poder responder, era o mais próximo que tinha de uma conversa.
Isso ela nunca fez, não me pergunte por quê.
Teve uma vez que ela me deu uma comida diferente. Ela disse o que era, mas eu esqueci. Tinha um gosto bom. Pensando agora, não sei se era bom mas não era o que ela costumava servir. Às vezes, à noite, isso você não pode contar pra ela, eu falava. Eu cochichava dentro da minha cabeça, bem baixinho, pra ela não ouvir. Uma vez ela ouviu, mas não pergunta o que ela fez. Não, não foi isso. Isso ela nunca fez.
Faz uns dez anos. Em que ano estamos? É, dez anos. Eu não tinha espelho. As únicas coisas que eu via eram a parede, o chão, o teto, o meu corpo (mas nunca os meus pulsos ou meus tornozelos) e ela e os nossos brinquedos. Tudo dentro da masmorra. Ela me limpava. Não sei. Não, isso ela nunca fez.
Nunca troquei. Não sei mais que cheiro tem. Só conheço o meu cheiro e o dela. Ela cheirava sempre bem, e eu sempre mal. Mas era assim que sempre foi. Ela se sentia bem do meu lado. Vivia falando isso, que eu fazia bem pra ela. Eu não lembro como aconteceu, acho que ela simplesmente me soltou. Pode ser, mas eu não tinha movimento. Todo eu era frágil, e cambeleava sem sair do lugar, era bem patético.
Não, isso ela nunca faria.

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