Desafio da Última Linha

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sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Noite de réveillon

Todos me esperam para a festa. Notarão minha demora, e ficarão cada vez mais preocupados, mas temo não poder avisá-los. Acharão que fui sequestrado, que me perdi pelo caminho, que bati com meu carro, que os troquei, que os esqueci. A última coisa que lhes passará pela cabeça, se chegar a passar antes que estejam bêbados, é que estou preso num elevador. Estou numa espécie de não caminho, nem no começo, nem no fim, muito menos no meio. Estou, sim, entre o décimo primeiro e o décimo segundo andares, isolado entre paredes, dentro de uma caixa de metal.
É inútil gritar e bater. A música alta que vem do andar imediatamente superior impede qualquer um dos vizinhos de me ouvir. Como são dois os elevadores do edifício em que moro, é certo que ninguém notará a falta daquele em que estou: usarão o disponível se necessário. Não quero amaldiçoá-los por isso. Deixa, que eles têm direito à festa – mesmo que eu também tenha direito ao grito.
Meu celular, negligentemente sem bateria. deus, às vezes, parece pôr-me em situações ridículas. Eis-me, portanto, aqui: incomunicável e preso. Penso que até os encarcerados das prisões gozam de mais comunicabilidade do que eu. Rio, mesmo sem achar muita graça do meu pensamento, menos ainda do meu estado.
Sento-me no chão, já sem muitas esperanças. Alguém me disse, uma vez, que o fim do ano é um momento propício de reflexão, de autoconsciência e de conversa interior. Esse alguém, suponho, nunca percebeu os efeitos benéficos de uma prisão como a que estou. Em companhia das paredes de metal e da porta aberta, que leva a uma quarta parede, de pedra, não posso senão imaginar e conversar comigo mesmo. Sei que as paredes têm ouvidos, mas prefiro dirigir-me a mim, ao menos por enquanto.
Saí atrasado para a festa para que fui convidado. Eram onze e meia, mas tinha a consciência de que o trânsito estaria limpo e, portanto, não demoraria a chegar. Ficar preso num elevador, na noite de réveillon, definitivamente não fazia parte dos planos. Há perigos que passam tão rápido por nós, que ignoramos sua existência. Achamos que, na iminência da morte, haverá um sinal divino, as trombetas dos sete anjos tocarão, e saberemos o momento exato do fim, de modo que, poderosos e sóis, poderemos escapar dela.
Não houve trombetas para mim: apenas uma música de gosto um tanto quanto vulgar, e um elevador que, de inofensivo, tornou-se meu túmulo.
Sei que pareço dramático. Não acredito que vá, de fato, morrer. O fim do ano é que me deixa um pouco sensível. Penso que o clima de mil-abraços do Natal e do Réveillon seja a causa disso. É como uma festa sem música, em que todos procuram parecer mais ou menos iguais. Embarco no fingimento.
Sei que não chegarei a tempo para a festa dos meus. Sentirei falta de seus abraços na passagem do ano. Não darei o primeiro beijo, não dançarei a primeira música. Menos ainda darei o primeiro grito, aquele grito libertador que expurga do corpo todos os doze meses de peso.
Mas ao meu salvador, sim, a ele serei muito grato. Sempre tive algo com a gratidão, essa espécie de humildade. Tendo-o em mente, tenho vontade do grito, como se, por imaginá-lo, ele estivesse nesse preciso momento com os ouvidos colados à porta do elevador social.
Alguém da festa abaixa o som, talvez esse meu redentor. Levanto-me de imediato, gritando e batendo nas paredes. Uma voz berra. Faltam cinco minutos!
A música, contudo, não retorna às alturas. Espero que tenham me ouvido. Continuo batendo e gritando.
Gritam-me de volta. Enfim, a chance de sair desse claustro! Mais vozes se juntam: estão curiosos pela minha má sorte, não tenho dúvidas. Gritam, agora, que vão buscar ajuda, e me tranquilizo. Estou feliz. Sento mais uma vez no chão, agora certo de que a liberdade não demora.
Nenhum dos meus salvadores sabe quem eu sou. Tampouco eu sei quem eles são. Decido a começar as resoluções para o ano que se abre. A primeira delas é evidente: conhecer os vizinhos, talvez manter com eles uma relação para além do bom dia, tarde, noite.
Meio alheios a mim, os vizinhos da festa se animam entre eles, mais uma vez: falta um minuto para começarmos um novo ano. Minha nova dúvida: será um ano de prisão ou de liberdade? Conseguirei sair dali em menos de um minuto?
Ouço um estalo. Temo serem fogos de artifício, mas senti-o por quase todo meu corpo. A menos que os tenham soltado dentro do poço, estou certo de que o barulho não foi pirotécnico. Novo estalo, seguido de uma agitação. O elevador estremece, e junto com ele as pessoas. Seus gritos, contudo, são de felicidade. Não ouviram os ruídos, ignoram meu perigo.
Começam a contagem. Já não tenho mais esperanças de começar o ano do lado de fora. Ao menos terei uma história para contar, penso, quando chegar junto aos meus. Vou abraçá-los três vezes mais forte, como se para compensar o erro de não ter-lhes visto nesse momento tão simbólico.
Dez. Novo estalo. Nove. Outro estalo. Oito. Levanto-me em agonia. Uma forte agitação.
O elevador despenca. Meu grito se mistura aos dos vizinhos, que já parecem não se incomodar com minha situação. Meu grito, sim, que será o primeiro do ano, mas também o último, e também nenhum. Uma árvore não faz barulho caindo numa floresta de gritos?
Eu, que ficara preso não apenas entre dois andares, mas na transição entre dois anos, entre duas festas, entre céu e Inferno. O elevador vai cada vez mais rápido em direção a este. Três, dois, um.
Morre o ano. Passo eu. Feliz

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

O noitifalante

A coisa começa assim: com uma palavrinha só. De repente, minha filha, ele desata a discursar de presidente. Comigo foi assim mesmo, você precisa é de ouvir.

A gente sempre dormiu agarradinho, mesmo depois de tanto tempo de casados. Eu me pegava até dando a mão para ele no meio da noite, que era para ver se ele não saia flutuando, sabe? Até o dia em que eu, sem querer, acordei. E ouvi, menina: ouvi ele dizendo pra alguém, sozinho, que me amava. Eu me derreti. Ele ainda me amava! Olha, que encontrar homem que te ame até dormindo não é artigo que se veja! Ele tava sonhando comigo, só podia era de ser.

Na noite seguinte, a mesma coisa. Engraçado que era na mesma hora. Eu nem parei para reparar, não, é que olhei assim, e reparei. Três horas, e ele disse de novo que me amava. Eu rederreti.

O corpo viciou, menina. Eu despertava todo dia só pra ouvir a rádio meu amor dizer o que dizia. A música era a mesma, mas eu é que não era. Cada dia era tão mais bonito de ouvir aquilo vindo daquele corpo sonolento!

Assim a gente foi se indo, ele me amando em palavras de noite, eu derretida o resto do dia.

Eu fazia questão de nem contar pra ele. Ficava quietinha. E se ele se policiasse? Imagina, que eu ia destruir a minha alegria noturna de cada dia? Me bastava ouvir.
Se existe voyeur, pra vista, depois eu procuro a palavra que serve pro ouvido.

Ele nem estranhava a minha alegria. Às vezes, menina, me dava uma coisa com isso. Eu danava a achar que ele sabia, que ele fazia só pra resgatar o nosso amor. Mas se mentia, mentia tão bem que eu acreditava – e eu queria acreditar, então casamos, e eu esquecia aquela coisa que me dava.

Às vezes o amor crescia. Ele dizia que me amava, e muito. Dizia que me amava, e pra sempre. Dizia que me amava, e muito e pra sempre. Teve um dia, menina, que ele recitou até poesia pra mim, mas eu nem entendi.

Ele passou a mudar de assunto, e a falar cada vez mais. E eu fui murchando de pouquinho em pouquinho. Eu acordava era na esperança de ele dizer A, ele vinha e dizia Bê e Cê!

Eu quis gritar com ele, mas não.

É claro que meu bico ficava do tamanho da lua, mas fui mais esperta. Era melhor ficar calada, que, naquela inconsciência toda, ele podia soltar uma, e eu pegava. Se ele estivesse me traindo, com certeza ia se trair também.

Enquanto isso, ele nem aí, menina.

A coisa toda continuou. Sete noites seguidas, ele falando de tudo, menos do amor que antes me tinha. E se ele já não gostasse mais de mim?

Até que um dia ele quis me largar. Eu já sabia, eu já previa, já preouvia. Perguntei se ele tinha uma amante, já quase adiantando aquilo que eu queria ouvir. Ele ficou foi uma arara, me chamou de todos os nomes. Disse que acreditava em muita coisa, só não no meu cinismo.

Encuquei, menina. Resolvi perguntar, agora já sem adiantar o que viria, o que tinha acontecido. Virei cínica mais cinco vezes antes de saber: quem tinha um amante era eu. Fiquei injuriada! Como uma coisa dessas? Eu que sempre fui tão franca. Eu, que só escondia dele o que ele mesmo fazia e nem lhe causava mal.

Ele saiu, eu aflita. Voltou com um gravador na mão. Botou pra tocar: no que eu ouço eu mesma falando o que ele me revelou há pouco tempo.

E aí eu entendi, menina, entendi que eu também falei dormindo.