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sexta-feira, 18 de julho de 2008

A mediana

“A minha vida, eu preciso mudar, todo o dia, para escapar da rotina dos meus desejos por seus beijos”
(Nasi)




Lúcia gabava-se de uma qualidade sua que punha atrás de nuvens todas as outras: seu equilíbrio. Tratava-se uma moça bastante centrada, categórica e sistemática. Um exemplo de pessoa para o desenvolvimento do capital, podia-se dizer, posto que sua rotina era de causar inveja mesmo aos mais metódicos idosos da região.
Era de acordar sempre às seis da manhã, sem o auxílio de qualquer aparato sonoro. Confiava seu despertar puramente a seu relógio biológico, que até então nunca havia falhado e, supunha-se, nunca falharia. Acordava, preparava o café da mesma marca de sempre comprado no mesmo mercadinho de sempre. É importante ressaltar, entretanto, que ela nunca admitira ser o café o elemento crucial para a manutenção do seu bem estar e dos seus olhos abertos durante o dia. Para ela, o grão nada mais era que um simples abridor de apetites, um pequeno luxo meio-amargo para comemorar a vitória de ter tido mais um dia e uma noite bem-sucedidos. Lúcia era muito bem-agradecida pelo simples fato de estar viva, fato admirável e exemplar que não se podia negar.
De café tomado, punha-se a caminhar – incrivelmente sempre com a mesma velocidade – para a banca de jornal, na qual comprava o mesmo jornal. Era realmente uma pena que as notícias não eram as mesmas de sempre. Que injustiça o mundo mudar!
E enquanto o mundo girava em torno de si mesmo, ela caminhava em círculos na estrada da vida.
Ao retornar, lia uma ou duas páginas (sempre essa mesma quantidade) e, insatisfeita com as notícias locais, vestia o mesmo terninho, apanhava sua bicicleta e pedalava seu caminho para o trabalho.
Lá, passava boa parte do dia a carimbar papéis, os quais, infelizmente, não eram do mesmo conteúdo do dia anterior. Quão amável era ver o trabalho mecânico de Lúcia, umedecendo seu carimbo estimado na tinta e, como quem descarrega toda a raiva, premendo-o contra os papéis que lhe eram destinados, com a incumbência de que fossem devidamente marcados.
De volta ao lar, tirava seus sapatos – adquiridos desde que seus pés, gloriosos pés, cessaram de crescer – e os engraxava com todo o esmero possível, como a cuidar de uma jóia rara. De fato, faz-se necessário admitir que, no pequeno mundinho de lucidez e equilíbrio da moça, os sapatos eram cruciais para a manutenção da sua rotina. Quem mais levaria pés tão gloriosos para a labuta diária, protegendo-os dos eventuais percalços do caminho? Nada havia de melhor no mundo que seus sapatos, exceto, talvez, o café, aquele prêmio merecido por mais um estágio galgado na dificuldade que era a vida.
Mesmo que o cenário fosse sempre o mesmo, os personagens do jogo da vida eram constantemente trocados – eis mais uma injustiça do mundo, que insistia em girar e armar uma grande conspiração contra a moça – e isso bastava para que a dificuldade desse jogo aumentasse. Um dia, por exemplo, teve de desviar de um transeunte desavisado da importância do mesmo caminho percorrido pela bicicleta de Lúcia. Quem, no mundo, Deus, haveria de atrapalhá-la no percurso sacro de todo dia? Devia ser uma conspiração internacional, organizada especificamente para atrapalhá-la e, portanto, ela merecia um prêmio por sobreviver a tais mudanças bruscas nos seus hábitos. E ei-lo: o café preparado às sete e quinze da manhã de todo o dia.
Relaxada em casa, punha-se a cozinhar o mesmo cardápio nutritivo, este cuidadosamente calculado em função da perda de nutrientes sofrida pelo organismo no dia-a-dia.
Satisfeita, tomava um banho não muito demorado – cujo tempo de duração era de exatos oito minutos, medidos cautelosamente pelo seu relógio biológico, o mesmo infalível que nunca a deixava de acordar – e atirava-se na cama.
Tudo por ela feito o era em incondicional desencadeamento de fatos, sem que houvesse tempo para questionamentos acerca da mediocridade de sua vida.
Porém, num fatídico dia, a perfeita ordem do mundo de Lúcia foi abalada.
Em meio a uma pequena crise financeira (que ocorrera pela incapacidade de Lucia de pegar uma quantia diferente de dinheiro, malgrado a inflação ou reajustes de preços quaisquer), Lucia pedalava pela calçada de uma rua de poucos passantes quando, de súbito, avistou uma nota reluzente de cinqüenta reais no chão, como que sorrindo para ela.
Começava, então, o inferno da dúvida de Lúcia Cecília.
Dividida entre pegar o capital e deixá-lo lá, ela cometeu o primeiro e último grande erro de sua vida: parar de pedalar. Olhou para os lados, para cima, para a cédula, para todos os cantos: ninguém passava no momento.
Mas qualquer mudança no seu padrão econômico implicava numa mudança na perfeição de sua rotina, que por sua vez, implicava na morte.
Venceu, como sempre (e isso já não é hábito descontrolado apenas de Lúcia), seu lado capitalista-burguês. Cega pela avidez de apanhar o capital, a jovem não notou que um carro vinha em sua direção e, concomitantemente à colocação do dinheiro no bolso, houve um choque.
Acabava-se, pois, a glória da vida mediana de Lúcia.
Pobre moça.

1 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom!